quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Código

- Theo, this is Matthew.
- You were right. He's American.
- Hi.
- I've seen you around. You've been coming to all the Nicholas Ray's.
- Yeah. I really like his movies.                   
- What? They Live By Night?
- Mm-mm. More like... Johnny Guitar and Rebel Without a Cause.
- You know what Godard wrote about him?
- No. What?
- "Nicholas Ray is cinema."

Este diálogo diz de Bertolucci nos Sonhadores duas coisas. Que gosta tanto de enviar recados ou piscadelas de olho, quanto tem pouca paciência para subtilezas. Estamos avisados: este não é um filme sobre cinema mas sobre cinéfilos, sobretudo um determinado tipo deles. Não que seja possível saber o que pensa Bertolucci de diálogos tão arriscados entre três jovens e, na verdade, o que se passava à porta da Cinemateca Francesa em 1968 não devia fugir muito daquilo. Mas o importante é que se tratava de dois franceses a educar um americano sobre o seu próprio cinema, um orgulho europeu talvez demasiado celebrado, mas que se foi verdade em algum momento, foi naquele.

Eu e Tu, o seu último filme, também tem uma mão cheia de recados como o psicólogo de cadeira de rodas à imagem do próprio Bertolucci que assim está há uns anos, ou do frame final congelado como em Os 400 Golpes. O guião vem de um livro, feito de uma história real de final muito pouco feliz, segundo me diz a internet, mas que neste caso (do filme), apesar de torturado deixa um sabor a ternura quando acaba. Substituindo tortura por melancolia, e sendo esta também uma história de manos, temos praticamente a marca de água de todos os filmes de Wes Anderson, embora este paralelismo não seja, de certeza, propositado.

Mas um outro foi-o e muito. A certa altura, o rapaz, Lorenzo, lê as primeiras páginas de O Vampiro Lestat de Anne Rice e (penso que só a partir daí) todos os códigos de filmes de vampiros entram em acção. Não só os mais óbvios como as duas camas lado a lado nas quais os irmãos dormem como em caixões, ou quando acordam ao início da noite em simultâneo, quando ele lê de cabeça para baixo ou, já no final, a hesitação em sair para a luz da manhã. Há uma clandestinidade, há caça (por medicamentos num momento, e por comida noutro), há presas indefesas (a avó primeiro, a mãe depois). Há planos de filmes de vampiros como na cena em que a Olívia se debruça sobre a madrasta que dorme e mesmo uma ligeira perversão incestuosa (felizmente, mesmo ligeira).

Com a enchente de filmes de vampiros da última década e meia, a pergunta que decerto cada realizador faz a si mesmo quando começa um é "não podendo escapar aos códigos, é possível escapar ao cliché?". Como no western, o que define o género não é a mera presença de cowboys mas a utilização de códigos específicos. E se a situação se inverter e forem usados os dos filmes de vampiros num filme sem vampiros? Ao aplicá-los de forma tão consciente quanto controlada, Bertolucci não fez um filme de vampiros, mas deixou-nos no meio de um, sem recorrer a caninos sobrenaturais, mas a cinema. Isto é, uma pessoa que, por absurdo, nunca tivesse visto um filme de vampiros, nunca teria percebido que estava num em Eu e Tu.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A bit of explaining to do

Many critics and viewers have felt that Blue Jasmine is Woody Allen’s best film since Match Point. The accompanying implication is that the intervening works – seven movies, starting with Scoop and ending at To Rome with Love – are just international chaff, too lightweight to get interested in. If you think, as I do, that such a judgment confuses solemnity with seriousness, that Match Point represents one of the worst dips in Allen’s career, and that the later films were often funny and showed at least flickers of artistic life, you have a bit of explaining to do.

The chief difference between Blue Jasmine and Match Point is that the new film is magnificently acted, where the other wasn’t really acted at all. [podem continuar]

Michael Wood, no LRB. Admitindo que não seja o melhor, é provavelmente o mais inteligente dos críticos de cinema.


Eu já ia ao King quando ainda era cool

Há um fenómeno, já reflexo, que leva algumas pessoas a resumir num nome ou numa obra o gosto dos outros quando este é levado para caminhos mais, digamos assim, complexos. Às vezes é condescendente ("eu devo ser muito burro"), outras ofensivo ("não acredito que eles gostem mesmo daquilo"), mas o fundamental é que, por norma, este fenómeno é sempre representado pela mesma entidade. O cinema e a literatura têm dois grandes clássicos: Bergman no geral para o primeiro e Ulisses de Joyce em particular, para o segundo. Na música o alvo costuma ser o free jazz, na pintura, Jackson Pollock, e assim sucessivamente.

José Rodrigues dos Santos fez um conhecido brilharete destes há pouco tempo quando disse não acreditar que alguém pudesse ler o Ulisses com prazer, e as caixas de comentários da crítica de cinema do Público devem ter uma ocorrência do termo 'Bergman' superior à das próprias críticas como em "vocês que só vêem Bergman, mas na verdade odeiam cinema" ou o não menos popular "eu gosto de cinema, mas não vejo só Bergman, também gosto de ir ver uma comédia romântica", como se Bergman (ou Joyce ou Ornette Coleman) fosse uma praga que destrói toda a criação em volta.

Não há nada de fascinante nestas pessoas (além disso são muitas) mas há na escolha do estandarte da indignação. Eu próprio gostaria de ser um ("tu dizes que gostas de blogs mas só lês Sérgio Gouveia"), só que é necessário uma obra mais vasta e, muito provavlemente, mais genial, pelo que é uma aspiração que não alimento nesta fase da minha carreira.

Vai havendo quem o consiga e foi assim que o King foi para as salas de cinema o que o free jazz foi para os géneros musicais, e este estatuto é um dos seus feitos. Ontem fechou, infelizmente sem grande surpresa. Como se diz aqui na Noite Americana, fechou porque não lhe deram de comer. As salas vazias dos últimos anos não eram bom augúrio, e sinceramente não sei dizer se há culpados, ou melhor, não sei dizer quais são. Mas posso ter pena na mesma. O King foi o cinema onde vi mais filmes e seguramente onde vi os melhores (falando só em estreias comerciais). Fechou ontem sem enchentes (nem perto de meia sala), mas com uma nostalgia generalizada entre os presentes e com sessões de Ozu e Bertolucci, o que não deixa de ser bonito, sobretudo porque com certeza não o fizeram de propósito.

O testemunho do título de cinema-para-pseudos-de-óculos-de-massa-e-gola-alta-que-vêem-filmes-que-não-gostam passa agora para o Nimas (na verdade, já o partilhava com o King, por vezes), e para provar que está à altura, começa já em Dezembro uma retrospectiva de Bergman.