segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Goodbye, Monkeyface.

Sendo um dos pontos mais altos do melodrama em cinema, dificilmente se poderia imaginar Letter From an Unknown Woman, de Max Ophüls, com outra pessoa que não Joan Fontaine. A carta que escreve começa com "I think everyone has two birthdays – the day of his physical birth and the first day of his conscious life" e segue com "as hard as it may be for you to realize, from that moment on I was in love with you. Quite consciously, I began to prepare myself for you." Todo o filme trata da fusão entre a fantasia romântica de Lisa e a sua própria existência, e só por isso não há nada de paradoxal na tranquilidade da obsessão que Joan Fontaine representa. O que se passa em Rebecca e em Suspicion não é a mesma coisa, mas a crença num determinado tipo fatalista de amor, é. Tratando-se de textos relativamente distantes, não é abusivo concluir que muito do tom melodramático destes filmes se deve a ela, talvez a actriz que melhor soube transpor para o sonoro um determinado tipo de interpretação característica do cinema mudo.

Como os últimos dias têm provado, não vale a pena querer tirar de uma fotografia interpretações maiores do que o que lá está (e mesmo assim...), mas esta de Joan Fontaine depois de ter recebido o Óscar por Suspicion, é a imagem, filmes excluídos, que ilustra melhor tudo o que quis dizer no parágrafo de cima.


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Código

- Theo, this is Matthew.
- You were right. He's American.
- Hi.
- I've seen you around. You've been coming to all the Nicholas Ray's.
- Yeah. I really like his movies.                   
- What? They Live By Night?
- Mm-mm. More like... Johnny Guitar and Rebel Without a Cause.
- You know what Godard wrote about him?
- No. What?
- "Nicholas Ray is cinema."

Este diálogo diz de Bertolucci nos Sonhadores duas coisas. Que gosta tanto de enviar recados ou piscadelas de olho, quanto tem pouca paciência para subtilezas. Estamos avisados: este não é um filme sobre cinema mas sobre cinéfilos, sobretudo um determinado tipo deles. Não que seja possível saber o que pensa Bertolucci de diálogos tão arriscados entre três jovens e, na verdade, o que se passava à porta da Cinemateca Francesa em 1968 não devia fugir muito daquilo. Mas o importante é que se tratava de dois franceses a educar um americano sobre o seu próprio cinema, um orgulho europeu talvez demasiado celebrado, mas que se foi verdade em algum momento, foi naquele.

Eu e Tu, o seu último filme, também tem uma mão cheia de recados como o psicólogo de cadeira de rodas à imagem do próprio Bertolucci que assim está há uns anos, ou do frame final congelado como em Os 400 Golpes. O guião vem de um livro, feito de uma história real de final muito pouco feliz, segundo me diz a internet, mas que neste caso (do filme), apesar de torturado deixa um sabor a ternura quando acaba. Substituindo tortura por melancolia, e sendo esta também uma história de manos, temos praticamente a marca de água de todos os filmes de Wes Anderson, embora este paralelismo não seja, de certeza, propositado.

Mas um outro foi-o e muito. A certa altura, o rapaz, Lorenzo, lê as primeiras páginas de O Vampiro Lestat de Anne Rice e (penso que só a partir daí) todos os códigos de filmes de vampiros entram em acção. Não só os mais óbvios como as duas camas lado a lado nas quais os irmãos dormem como em caixões, ou quando acordam ao início da noite em simultâneo, quando ele lê de cabeça para baixo ou, já no final, a hesitação em sair para a luz da manhã. Há uma clandestinidade, há caça (por medicamentos num momento, e por comida noutro), há presas indefesas (a avó primeiro, a mãe depois). Há planos de filmes de vampiros como na cena em que a Olívia se debruça sobre a madrasta que dorme e mesmo uma ligeira perversão incestuosa (felizmente, mesmo ligeira).

Com a enchente de filmes de vampiros da última década e meia, a pergunta que decerto cada realizador faz a si mesmo quando começa um é "não podendo escapar aos códigos, é possível escapar ao cliché?". Como no western, o que define o género não é a mera presença de cowboys mas a utilização de códigos específicos. E se a situação se inverter e forem usados os dos filmes de vampiros num filme sem vampiros? Ao aplicá-los de forma tão consciente quanto controlada, Bertolucci não fez um filme de vampiros, mas deixou-nos no meio de um, sem recorrer a caninos sobrenaturais, mas a cinema. Isto é, uma pessoa que, por absurdo, nunca tivesse visto um filme de vampiros, nunca teria percebido que estava num em Eu e Tu.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A bit of explaining to do

Many critics and viewers have felt that Blue Jasmine is Woody Allen’s best film since Match Point. The accompanying implication is that the intervening works – seven movies, starting with Scoop and ending at To Rome with Love – are just international chaff, too lightweight to get interested in. If you think, as I do, that such a judgment confuses solemnity with seriousness, that Match Point represents one of the worst dips in Allen’s career, and that the later films were often funny and showed at least flickers of artistic life, you have a bit of explaining to do.

The chief difference between Blue Jasmine and Match Point is that the new film is magnificently acted, where the other wasn’t really acted at all. [podem continuar]

Michael Wood, no LRB. Admitindo que não seja o melhor, é provavelmente o mais inteligente dos críticos de cinema.


Eu já ia ao King quando ainda era cool

Há um fenómeno, já reflexo, que leva algumas pessoas a resumir num nome ou numa obra o gosto dos outros quando este é levado para caminhos mais, digamos assim, complexos. Às vezes é condescendente ("eu devo ser muito burro"), outras ofensivo ("não acredito que eles gostem mesmo daquilo"), mas o fundamental é que, por norma, este fenómeno é sempre representado pela mesma entidade. O cinema e a literatura têm dois grandes clássicos: Bergman no geral para o primeiro e Ulisses de Joyce em particular, para o segundo. Na música o alvo costuma ser o free jazz, na pintura, Jackson Pollock, e assim sucessivamente.

José Rodrigues dos Santos fez um conhecido brilharete destes há pouco tempo quando disse não acreditar que alguém pudesse ler o Ulisses com prazer, e as caixas de comentários da crítica de cinema do Público devem ter uma ocorrência do termo 'Bergman' superior à das próprias críticas como em "vocês que só vêem Bergman, mas na verdade odeiam cinema" ou o não menos popular "eu gosto de cinema, mas não vejo só Bergman, também gosto de ir ver uma comédia romântica", como se Bergman (ou Joyce ou Ornette Coleman) fosse uma praga que destrói toda a criação em volta.

Não há nada de fascinante nestas pessoas (além disso são muitas) mas há na escolha do estandarte da indignação. Eu próprio gostaria de ser um ("tu dizes que gostas de blogs mas só lês Sérgio Gouveia"), só que é necessário uma obra mais vasta e, muito provavlemente, mais genial, pelo que é uma aspiração que não alimento nesta fase da minha carreira.

Vai havendo quem o consiga e foi assim que o King foi para as salas de cinema o que o free jazz foi para os géneros musicais, e este estatuto é um dos seus feitos. Ontem fechou, infelizmente sem grande surpresa. Como se diz aqui na Noite Americana, fechou porque não lhe deram de comer. As salas vazias dos últimos anos não eram bom augúrio, e sinceramente não sei dizer se há culpados, ou melhor, não sei dizer quais são. Mas posso ter pena na mesma. O King foi o cinema onde vi mais filmes e seguramente onde vi os melhores (falando só em estreias comerciais). Fechou ontem sem enchentes (nem perto de meia sala), mas com uma nostalgia generalizada entre os presentes e com sessões de Ozu e Bertolucci, o que não deixa de ser bonito, sobretudo porque com certeza não o fizeram de propósito.

O testemunho do título de cinema-para-pseudos-de-óculos-de-massa-e-gola-alta-que-vêem-filmes-que-não-gostam passa agora para o Nimas (na verdade, já o partilhava com o King, por vezes), e para provar que está à altura, começa já em Dezembro uma retrospectiva de Bergman.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

De novo Paul Newman e o Método


Desta vez com Rocky Graziano para Somebody Up There Likes Me.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

I'm not drunk. I'm lame.


Esta imagem está há alguns anos na parede da sala de dois amigos e resume quase todo o imaginário que eu tinha de The Hustler antes de o ver. Muito por isto, e por Paul Newman, quando me decidi a fazê-lo, pensei que ia ver um filme no nível de conforto de The Sting, com intrujas, vigaristas, hustlers, que são antes de tudo cavalheiros. Manners before morals podia ser a tagline de uma certa linha de protagonistas não tão anti-heróis assim. Dez minutos pelo filme adentro e, mesmo surpreendido com a luz dura da fotografia, a insistir num noir já fora de moda (o filme é de 1961), achei ainda que sabia perfeitamente o que estava a ver, isto é, o grande precursor das narrativas do talento humilhado de Karate Kid, Rocky III, etc. Se fizesse como Breton e Vaché e mudasse de sala logo que compreendesse o guião ou me aborecesse, provavelmente não teria deixado terminar a primeira partida entre Paul Newman e Jackie Gleason (apesar de não haver nada de errado em nenhum momento até aqui). 

É no bar de um terminal de autocarros durante a noite, que o caso muda de figura e a vulgaridade do filme termina abruptamente. Um encontro de madrugada no único bar ainda aberto da cidade, diz tudo o que precisamos de saber sobre o homem e a mulher que o protagonizam. Já não é necessário revelar que bebem (até já estão a beber café nesse momento), a solidão nunca estará escrita em diálogos e a conversa na mesa é mantida próxima do zero, até que Paul Newman finalmente adormece. Do outro lado da mesa está Piper Laurie, que nunca deixará de aparecer em literal segundo plano, por vezes de forma quase invisível e que, seja pelo que faz seja por ter (muito) melhor texto, nunca mais deixará o filme pertencer a Paul Newman ou a qualquer outro.

Laurie, e o momento tardio em que aparece lembram a mulher perturbada de Detour, mesmo fisicamente. Laurie lembra as personagens quebradas de histórias de Flannery O'Connor. Esse momento no filme transporta-o definitivamente para o ambiente noir que estava prometido e a luz fica mais dura, as sombras mais abundantes e mais negras, e os diálogos tornam-se mais cadenciados, mais angustiados e cruéis. A tragédia espreita, adeus Karate Kid, e esta convicção devemo-la inteiramente a Piper Laurie.

Porque a personagem é mais forte, embora mais estragada e irreparável, sente-se uma inversão dos papéis clássicos de um noir. Parece ser Eddie, o personagem de Paul Newman quem tem para onde continuar após o azar, enquanto que o destino de Sarah está inapelavelmente para lá do ponto de não retorno. Num momento feliz, durante um picnic, Eddie responde, depois de um comprometido silêncio ao primeiro "I love you" de Sarah, com "you need the words?" Sarah diz "Yes, I need them very much. If you ever say them I'll never let you take them back." As respostas de Sarah são sempre relativamente inesperadas, mas é Piper Laurie que lhe dá muito mais do que o texto. É a personagem mais complexa, mas também a mais inteligível quando termina o filme.

Piper Laurie voltaria quinze anos mais tarde a um papel em que ultrapassou em muito o texto, mas desta vez num dueto espectacular com Sissy Spacek, ambas a encerrar para sempre as interpretações de mãe e filha em Carrie. O remake com Julianne Moore irá provar que esta relação de amor, posse, dor que faz parte do melhor do imaginário popular do cinema está muito menos no texto do guião, do que nestas duas actrizes e na sorte do seu encontro.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Exacto, exacto!

Numa entrevista recente, Stan Lee disse estar muito satisfeito com todas as adaptações das suas criações ao cinema. Por criações de Stan Lee entende-se quase tudo o que existe em filme de super-heróis dos últimos anos com excepção de Batman e Super-Homem, ou seja, o Homem-Aranha, Hulk, Homem de Ferro, Quarteto Fantástico, a maior parte dos Vingadores, os X-Men, enfim, o filão principal da mina de ouro. No entanto acrescentava que não consegue compreender um pormenor importante: por que raio são todos os heróis tão atraentes? De facto todos são.

Convenhamos que quando falamos de cinema não costuma haver pessoas repulsivas no ecrã, e nem os não actores do neo-realismo italiano eram desagradáveis. O pai em Ladrões de Bicicletas não envergonhava uma fotografia de grupo do star system do seu tempo, nem as pessoas de carne e osso do experimentalismo de Cassavetes em Shadows eram raparigas e rapazes feios.

Ainda assim, Stan Lee tem razão. Tudo parece agora um pouco mais grave como num episódio de Morangos com Açúcar. Já não é uma questão de morte aos feios, mas de morte à mediania, ao simpático, ao jeitoso. Que seria hoje do sorriso manchado de tabaco da Anna Karina?

Confesso que não penso assim tanto no assunto, sou relativamente conformado, ou melhor, indiferente à situação e, se as há, não consigo pensar nas consequências desta tendência ou se são irreversíveis.

Só que pontualmente o problema torna-se ridículo quando, para um remake de Carrie, se convida a miúda da foto abaixo para representar a rejeitada de um liceu americano. Enfim, ninguém aqui quer ofender a Sissy Spacek, mas que raio procuraram os produtores no casting (nem vale a pena ir mais longe e perguntar para que precisamos de um remake de Carrie)? Uma boa ideia teria sido começar por ler o que achou da interpretação original Pauline Kael em 1976: "Sissy Spacek uses her freckled pallor and whitish eyelashes to suggest a squashed, froggy girl who could go in any direction; at times, she seems unborn - a fetus." Ao invés, isto.


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Willie Mosconi* ajuda Paul Newman com o Método


*

Um post em forma de lista

Haverá bons filmes de desporto para além dos de boxe? Há uns quantos filmes que se tornaram relativamente populares sobre beisebol (sobretudo com ligas amadoras), futebol americano (show me the money), golfe (Kevin Costner) e, claro, o filme que cruzou futebol, Stallone e A Grande Evasão (só agora me ocorreu que o nome Grande Evasão é parecido com Grande Ilusão - este poder de associação...). Está nas salas também um filme de Fórmula 1 e, de facto, os anos 80 do automobilismo parecem ter matéria para inventar um género, embora também existam coisas como Dias de Tempestade. Penso que é impossível fazer um bom filme sobre ciclismo (há - outra vez - um com o Kevin Costner, de bigode), sobretudo nos dias que correm. O Tour deve ser extremamente cinematográfico, mas tremo de pensar num filme sobre "o drama do dopping" (e ainda mais sobre Lance Armstrong, que, aposto, já estará em produção em algum sítio). Como não é possível fazê-lo sem o mencionar (ao dopping), e como não estou a ver que seja possível mencioná-lo sem mau gosto, então esperemos que não aconteça nunca. O basquete oscila entre o Lobijovem (nunca se fala dos bons momentos de tradução em Portugal, mas há um ou outro que correu muito bem) e Raiva de Vencer (dos quais este não é um exemplo), um filme dos anos 80 com o Gene Hackman que me comove sempre um bocadinho, se não por mais nada, por vê-los todos a jogar de All Star calçadas. Até hoje não sei se devo considerar desporto actividades nas quais se pode (deve até) beber pints e fumar. De certezinha que existe mais do que um filme sobre dardos, mas não conheço nenhum, os Coen fizeram a obra definitiva sobre bowling, e o Scorsese tem aquele mistério na carreira chamdo A Cor do Dinheiro, sobre o qual nunca saberei se poderia vir a ser um bom filme caso o Tom Cruise nunca tivesse nascido. Acho que nem assim. E finalmente - era aqui que eu queria chegar - após adiar durante anos por total falta de interesse (eu não sei jogar snooker e mais depressa fico a ver uma partida de curling na televisão) vi o The Hustler e não tenho pensado noutra coisa, mas agora fica para a semana.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Dexter, Dexter (um post sem spoilers)

Vou contar-vos um segredo. O último episódio de The Wire não é muito bom. E a última temporada impede a série de ser um 10/10 absoluto. Se não me estiver a esquecer de nada, só os Sopranos souberam acabar uma série de televisão com génio. Algumas souberam acabar com dignidade, outras não, e outras ainda, mesmo fechando sem ponta dela, ficaram para a História da televisão (o Twin Peaks, para começar).

O público das séries é tramado. Chega-se a um final e lêem-se desabafos que envolvem ora traição, ora desejos de morte, depois de anos de posse e competição. Hoje numa esplanada, um miúdo de dezasseis anos dizia ter optado pelo American Horror Story em vez do Walking Dead e não se ter arrependido. Nos comentários das redes sociais as pessoas do Breaking Bad achincalham as do Dexter. Suponho que isto é um fenómeno de televisão. Tirando alguns tolinhos, não se concebe que alguém diga que optou por Ford em vez de Hawks, Rossellini em vez de De Sica, Mizoguchi em vez de Ozu, Truffaut em vez de Godard (por acaso este é comum), Keaton em vez de Chaplin (olha este também; esqueçamos todo este parágrafo).

Somos (já cá estou dentro) um público competitivo que defenderá até ao fim o seu protegido. Se o vimos crescer durante dez anos, a situação descontrola-se, e inevitavelmente viramo-nos contra quem o criou. O equilíbrio em ficção de televisão é difícil, não há espaço para obras de autor. É um equilíbrio entre ter audiências ou ser cancelado. E se tem audiência é muito provável que a corda seja esticada até quebrar e ter de se concluir a série já depois de destruída. Não há muita margem de manobra para os argumentistas e, outro segredo, não é fácil manter um argumento e um guião no topo durante 60 a 80 horas. O ideal seria ter os argumentistas fechados durante todo o período. Não foi mais a incompetência dos criadores de Lost do que as cedências aos disparates que o povo ia dizendo (cheguei a ler sugestões em fóruns inacreditáveis que deram em episódios quase ipsis verbis) que o tornaram num dos desenvolvimentos mais patéticos de sempre de uma história.

E agora o Dexter, coitado, que terminou com uma temporada horrível, porque na verdade já não havia nada a fazer. Já não podia ser salvo (ainda assim poder-se-ia ter baixado um pouco menos os braços) porque há anos que era tudo um bocado merdoso. Se o ouvisse dizer mais um vez que tinha encontrado "finalmente" alguém a quem contar o seu segredo (acho que foram umas quinze pessoas, num elenco de vinte e cinco), eu próprio podia ter abraçado a carreira da psicopatia. Só que este último episódio, ao contrário do resto da temporada, não é nada mau. Chega a ser bom.

Talvez as pessoas (as pessoas estão muito zangadas) se tenham esquecido que gostaram inicialmente de Dexter por causa de uma boa premissa, um bom personagem, mas também pelo ambiente desconfortável que a primeira temporada - mas só a primeira - soube criar. Dexter foi um personagem negro e imprevisível apesar de todas as suas rotinas (imprevisibilidade que vem de ser um psicopata, toda a gente, escritores incluídos pareceu querer deixar isto de lado). Havia mais claustrofobia, mais sangue, mais suor (mas curiosamente menos lágrimas), tudo era ligeiramente mais mórbido, só o suficiente para deixar um desconforto sinistro. Dexter era uma série que já estava condenada, que cometeu demasiados erros, mas este episódio, com um tom e estilo tão semelhantes ao dos primeiros, foi como um rebuçado que os criadores  da série quiseram oferecer, mas que a julgar pelas reacções pode ter vindo tarde demais. Pela minha parte foi um esforço notado e bem-vindo.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Nem tenho a certeza que vissem os filmes um do outro



To Catch a Thief - Alfred Hitchcock


The Horse Soldiers - John Ford

terça-feira, 17 de setembro de 2013

"It's a hard world for little things" (ou "coitadinho de quem é pequenino")



Quando se usa crianças em filmes, a tentação de criar adultos em ponto pequeno, mas melhores, ganhou quase sempre. É o elogio da inocência como sinónimo de bem e até de inteligência, que atingiu o seu ponto mais baixo e perverso com a criança grande Forrest Gump. A utilidade destas personagens é normalmente a de compasso moral dos adultos com quem contracenam. Spielberg, de quem nunca se poderá dizer que não sabe recriar a infância, teve sempre como tema este confronto entre um mundo bom e um corrompido e os únicos bons adultos são os que conseguem recordar (de forma sempre incompleta, claro) o que é voltar a ser uma criança.

A infância é um tema fascinante, mas mais vasto. É incompreensão (também do mal, sim, mas não como oposto ao bem), é uma imaginação descontrolada que por vezes cria fantasias negras (tive os piores pesadelos que me lembro antes dos dez anos), e portanto, medo. É um território de medo e de medos de que nunca nos esquecemos. Hitchcock lembrava-o frequentemente e era essa a sua forma de avaliar se estava a criar bom ou mau terror. Comparava sempre com o que o assustava nas histórias que lhe contavam em criança.

Dois filmes de fácil associação - Night of the Hunter de Charles Laughton e El Espíritu de la Colmena de Victor Erice - cumprem melhor do que qualquer outro que me lembre este retrato difícil. Não só o medo, embora em parte seja esse o grande tema, mas a curiosidade, a ingenuidade (ao serviço de nada, está só lá) e, o que talvez falte em outros filmes, uma forma de pensar menos lógica, mais aleatória, do que conseguimos compreender enquanto adultos, mas nem por isso correcta. Há ainda tudo o resto como a inocência e bondade, a ligação a manos, ou a relação de confiança (e de desconfiança) com os pais. É um conjunto que raramente atingiu um carácter tão total como nestes dois filmes.

BJ

Blue Jasmine tem sido descrito como um corpo estranho na obra de Woody Allen e o providencial regresso aos bons filmes depois do habitual anúncio morte do talento do artista (que acontece, pelo menos desde Stardust Memories, é o quanto a conversa do ano passado depois do filme de Roma é original).

Independentemente da tolice do regresso, pode reconhecer-se que há alguma novidade em Blue Jasmine. Uma personagem como esta, tão "estragada" e destruída por dentro, não é muito habitual em Allen, mesmo que a neurose, a ansiedade, e a doença tenham sido sempre temas presentes. Assim de repente, lembro-me de Charlotte Rampling em Stardust Memories, embora mais usada para caracterizar a personagem de Woody Allen do que para existir enquanto tal, e de Radha Mitchell em Melinda and Melinda, filme sobre o qual nunca entenderei como lhe caiu tanta má opinião em cima. Em Blue Jasmine, tragédia e comédia estão tão sobrepostas como estavam formalmente separadas em Melinda and Melinda (exercício obviamente colado a Malle quanto mais não seja por ver Wallace Shawn a conversar numa mesa de restaurante em Nova Iorque).

É raro ainda que a personagem central seja tão preponderante, mas a isso já não é estranho que seja de Cate Blanchett de quem estamos a falar. E talvez se venha a dizer que Woddy Allen lhe deve este regresso aos bons filmes, mas é muito provável que o contrário não seja menos verdadeiro. Cate Blanchett deve provocar mais noites em branco a Meryl Streep do que Cristiano Ronaldo a Eusébio. É de certeza a melhor actriz da actualidade e pode aspirar a ser a melhor de todos os tempos, mas os últimos dez anos, desde Life Aquatic, foram no mínimo áridos. Entre muito trabalho sem absolutamente nada a apontar como nos Senhores dos Anéis e sucedâneos, Indiana Jones, Robin Hood ou naquele acidente de David Fincher, há alguns exercícios óbvios e aborrecidos como Elizabeth ou Katharine Hepburn e aquele truque de feira algo gratuito de I'm Not There de Todd Haynes.

De Cate Blanchett nunca se espera menos do que a perfeição, e é o que acontece em Blue Jasmine, mas acontece um pouco mais. Esta pode bem ser a personagem de Woody Allen mais bem escrita de sempre. Talvez soubesse que com Blanchett (ele que sempre confessa ter muito pouca paciência para o trabalho dos actores) não podia fazer menos do que isso. É um daqueles encontros que fazem engolir em seco quem já só espera o pior de Woody Allen, mas também quem alimenta embirrações completamente inexplicáveis com Cate Blanchett (ok, aqui admito que seja só eu).

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O espírito da colmeia

Quinta-feira passada, na Cinemateca, Victor Erice preparava-se para fazer a primeira de muitas apresentações dos seus filmes pela mão, talvez literalmente, da directora. Esta, antes de anunciar o realizador com justificado orgulho, informou as pessoas de uma enorme surpresa preparada para sábado. O raciocínio que reproduzo de seguida, só o contei, felizmente, a um par de pessoas, mas pareceu-me o único plausível: sendo que sábado seria apresentado em ante-estreia Like Someone in Love, o filme "japonês" de Kiarostami (estas aspas não fazem aqui falta nenhuma por muitas razões), e visto que estava informado da amizade conhecida entre este e Erice, com exposições e outras experiências partilhadas, não vi como podia a surpresa ser outra que não a presença do iraniano na festa.

Cheguei cedinho no sábado, portanto. Bem a tempo de ver a directora da Cinemateca com um, digamos, casaco de inspiração japonesa, e reflectir se, posto isto, preferia que Kiarostami estivesse ou não presente. Não estava, mas estou convencido que a minha linha de pensamento fazia muito mais sentido do que a realidade, pelos dados que me foram fornecidos.

Ainda que ninguém tenha pensado como eu, a Cinemateca estava cheia e a ignorante vox populi habitual  na linha d"uma sala que exibe sessões para três pessoas de gola alta e óculos de massa", não tardou a passar para um curioso "é uma vergonha que as bilheteiras não funcionem eficazmente". Sinceramente, preocupa-me um pouco mais a falta de eficiência com que é servida uma imperial (um euro e dez, no entanto, o que são óptimas notícias) ou com que se gere a logística dos croquetes ("temos, mas é preciso ir fritar"). Sendo no entanto gente simpática e solícita, admitimos que os nervos vêm só de uma vontade genuína em servir bem, e que a eficiência será em breve mais constante. É importante que a população refreie um pouco a eventual irritação que a dificuldade em pagar a conta a segundos do início de um filme possa provocar, até porque a culpa desta situação é mais da população do que do corpo de trabalhadores do bar.

Perto das sete, sempre com impecável sentido de tempo (bilhete comprado a tempo, imperial paga a tempo), partilhei a satisfação da multidão que se acumulava à porta das salas antes de entrar para a ante-estreia de Like Someone in Love, com a inexplicável ausência do realizador, mas apresentado pelo seu bom amigo (eu disse logo) Victor Erice, que, momentos antes de entrar tinha sido conduzido pelo braço a uma terceira pessoa com a promessa de que lhe seria apresentado um poeta.

Vitor Erice é um homem de 73 anos. Antes de continuarmos, façam por favor uma pesquisa por Victor Erice no Google Images para tentar perceber que tipo de contrapartidas se deve oferecer ao diabo para conseguir aquele nível de implantação capilar aos 73 anos. É também um homem extraordinário, humilde na apresentação da sua obra mas seguro da sua importância, directo, simples, generoso, claro em todas as abordagens do que está a explicar (está sempre a explicar alguma coisa da forma menos ofensiva possível).

Assim que se acenderam as luzes após Like Someone in Love, a unanimidade que eu decidi que iria existir em torno do filme foi logo quebrada por alguns comentários de anónimos que se cruzavam comigo, e que pareciam ora estranhamente ofensivos ("isto era para rir, certo?"), ora um alerta quanto ao meu sentido crítico quando estão envolvidas referências mais ou menos óbvias a Ozu ("fiquei um bocadinho desiludida"), ora a prova de que os memes da internet não são inventados do nada ("gosto mais dos primeiros trabalhos dele"). Talvez porque o público fosse fortemente constituído por casais de namorados, nenhum dos homens com quem me cruzei mencionou os lábios da protagonista, embora alguns olhares vazios e distantes em silêncio fossem de certa forma comprometedores. Eu próprio explicarei mais tarde porque acho que está tudo bem com estes lábios e até mesmo com o filme de Kiarostami.

Intervalo das duas sessões, ainda mais gente no hall, acumulavam-se os poetas (foi-me mesmo apontado um), nenhum tempo para uma imperial, um justificado ambiente de festa partilhado por todos os presentes em que se notava bem a satisfação revanchista dos olhares cúmplices que pareciam dizer para a massa filisteia lá fora "com que então éramos só três, hã?". Soube mais tarde, com pena, que Pedro Costa começava a apresentação de I Walked with a Zombie de Tourneur na sala ao lado com "eu queria que A Casa de Lava fosse um remake deste filme", mas não escolhi mal. As duas curtas de Erice (na verdade três: a surpresa - e boa - foi a exibição de Vidros Partidos, filme que fez para Guimarães 2012) são dois filmes reconfortantes e (sei que todos o são, mas estes de forma especial) muito pessoais, donde foram escolhidos a dedo para uma despedida.

No final da exibição, a aguardada conversa com Erice e Costa contou só com Victor Erice. Não é demasiado sublinhar a simpatia deste homem que nos fez esquecer de perguntar se Pedro Costa estaria aborrecido ou amuado, e que lhe permitiu não mandar à merda o jovem "estudante de cinema" que lhe disse estar muito apreensivo por ter de vir a fazer cinema num mundo como este, onde a poesia já morreu. É de facto azar um gajo nascer nestes tempos e não nos de Murnau, Dreyer, Bresson ou Erice, em que a poesia que abundava pelo mundo fazia praticamente todo o trabalho por eles.

Existir uma Cinemateca tão boa como a Portuguesa prova sempre ser, é um grande privilégio e que permite sábados tão extraordinários como este. Num só dia estiveram dois dos maiores realizadores vivos a apresentar filmes em salas diferentes (no início da semana esteve também Denis Côté antes dos seus) e as salas esgotaram com facilidade. É um disparate achar que é necessário discutir a utilidade da Cinemateca e ter de voltar sempre a ler todos os anos dissertações bem ou mal intencionadas sobre o Bem Público. Há discussões bem mais interessantes (e úteis), até mesmo aquelas em torno da morte da poesia.

Sete horas depois de ter chegado à Cinemateca, o destino entregou-me o equilíbrio intelectual em forma de jantar num muito competente restaurante de taxistas na Paiva Couceiro, onde nem sempre estive certo de não levar nos cornos por causa de uma discussão, na qual nunca estive envolvido, sobre a distância exacta em linha recta entre Lisboa e Madrid.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Greenberg (enquanto esperamos por Francis Ha)

Florence (Greta Gerwig) é uma rapariga mais gira que feia, mais gordinha que magra (Roger Greenberg, a personagem de Ben Stiller, consegue descrevê-la nos mesmos termos mas de forma ainda mais ofensiva do que eu). Entre estes mais e menos pode continuar-se a defini-la numa notável mediania até atingir em cheio a pessoa para quem se inventou a cretina frase "merece ser feliz".

Florence, que escolhe mal os homens, que é magoada em silêncio, que faz planos, que tem amigas para quem tudo parece mais simples, que diz das suas one-night-stands "I've gotta stop doing things just because they feel good", e que, sobretudo, nunca é o problema de ninguém, é demasiado familiar para quem se lembrar de Fast Times at Ridgemont High por uma razão mais do que o espectacular Spicolli de Sean Penn. Dez anos mais nova, Stacy (Jennifer Jason Leigh há 30 anos), é esta mesma Florence, que tragicamente ainda tem sexo trapalhão, e ainda enfrenta ou resolve os problemas (extraordinariamente semelhantes) com resignação triste. Escrever "ainda" tantas vezes talvez seja demasiada boa vontade, mas depois de imaginar Florence como Stacy dez anos mais velha, voltar atrás é como tentar deixar de ver a imagem de um estereograma.

Certo, nunca saberei se, caso Jennifer Jason Leigh não tivesse escrito e produzido Greenberg com Noah Baumbach, esta associação teria chegado a existir, mas há muito mais de prelúdio dos temas de Baumbach em Fast Times do que de típico filme de liceu. Sem esforço junta-se Fast Times, Kicking and Screaming e Greenberg numa trilogia de geração, arrancando para subtítulo o recado que Ivan (Rhys Ifans) dá a Roger quando por fim perde a paciência: It is huge to finally embrace the life you never planned on.

sábado, 3 de agosto de 2013

Pauline Kael

Vocês os seis, sigam este blog:

Kael Daily

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Les Cine Filles

Há no amor pelo cinema de americanos como Bogdanovich ou Scorsese uma reverência diferente daquilo a que nos habituámos a chamar cinefilia, esse termo que, enfim, é complicado. Talvez não exista nos primeiros, cuja infância vem dos anos 50, uma decisão intelectual deliberada de ver filmes, mas antes um hábito familiar rotineiro, que vem menos de cineclubes e de ciclos do que de salas comerciais de bairro. Godard disse mais do que uma vez que para o cinéfilo a obsessão pelo cinema é uma cruz e sofrimento. Para Scorsese a sua obsessão é apenas isso*.

Neste texto que agora escreveu, que é sobretudo bonito, Scorsese passa por umas quantas pessoas e inovações que duram até hoje e descreve a montagem tal e qual começou por ser ensinada, nos anos 20, por russos em universidades (cursos superiores de cinema nos anos 20. Não sei que era de nós sem a União Soviética): uma imagem exibida após outra tem um significado diferente das mesmas duas imagens exibidas em separado. A montagem é parte tão indissociável de um filme, que é difícil imaginar que tenha de ter sido inventada em algum momento, e até se seria inevitável fazê-lo. Foi Eisenstein nas famosas escadas de Odessa do Couraçado Potemkine, de que não é exagero dizer ter sido a cena mais influente de sempre do cinema, que abriu caminho e estabeleceu até hoje que não há outra forma de filmar, e Dziga Vertov no Homem da Câmara de Filmar que mostrou o potencial extravagante da montagem. Mas foi um pouco antes, e com um exercício bastante mais simples, que um outro russo, Lev Kuloshev, explicou aos seus alunos o poder da montagem. São alguns segundos tão valiosos há quase cem anos quanto agora.



 *Se parecer que estou a preferir uma a outra ou, pior ainda, parecer que eu entendo que elas existem assim, opostas e arrumadas, é porque eu não sei escrever. Godard não estava a mentir. Os miúdos dos Cahiers du Cinema nos anos 40 e 50 viveram dentro de cineclubes, assistiam a cinco sessões num dia e escreveram o enquadramento teórico mais exaustivo que até aí (até hoje?) existiu em cinema, de tal forma consciente que dele nasceu a Nouvelle Vague, o que é em si mesmo um feito (nunca, nunca é demais sublinhar os 24, 25 anos de idade que tinham estas pessoas dos Cahiers).

Nothing

Tenho finalmente nas mãos, há vinte minutos, o gigante volume de crítica de cinema da Pauline Kael, For Keeps.

Comecemos pelo A Bout de Souffle:

The heroine, who has literary interests, quotes Wild Palms, "Between grief and nothing, I will take grief." But that's just an attitude she likes at that moment; at the end she demonstrates that it's false. The hero states the truth for them both: "I'd choose nothing."

quinta-feira, 20 de junho de 2013

You, Sir, are a gentleman and a scholar

No segundo filme de Robert Bresson não é possível ainda saber que teríamos pela frente as obras-primas de Un condamné à mort s'est échappé ou Pickpocket, e era impossível adivinhar que em breve Bresson iria apenas trabalhar não-actores e não-diálogos ou que se tornaria no mais asceta dos realizadores. Les Dames du Bois de Boulogne é um melodrama com as suas extravagâncias, que começam no facto de ser um filme de Bresson, com guião de Cocteau adaptado de uma história contada em Jacques, o Fatalista de Diderot e lembra os melhores Renoir e Hawks. Só poderá sair desiludido quem se habituou mal ao que nem Bresson ainda saberia vir a ser. Estamos todos em absoluta legitimidade.

O argumento vem de uma das poucas histórias no livro de Diderot que não é contada por Jacques e, adaptados os tempos para os anos quarenta de Bresson, é bastante fiel ao original, excepto num único elemento. Tenho de contar parte da história, mas sendo um filme com quase setenta anos, a vergonha deste eventual spoiler não é menos vossa do que minha. Les Dames du Bois de Boulogne é a história de uma mulher despeitada pelo fim do amor do seu noivo que, de vingança, pretende juntá-lo a uma jovem que recebia favores de homens (ou lá como se dizia na altura). Para o fazer, retira a rapariga e a sua mãe da rua, põe em marcha um elaboradíssimo plano para lhes limpar o nome, e poder apresentá-las ao ex e deixar o amor acontecer. Apaixonado pela pureza absoluta da jovem, o homem consegue finalmente convencê-la a casar, apenas para ouvir, depois de celebrado o sacramento, que esta rapariga tem um passado conhecido em toda a cidade.

Na história contada no livro (por uma estalajadeira a Jacques e ao seu amo), a rapariga deixa-se levar sem resistência e até com entusiasmo pelo plano da mulher e da mãe, mas no filme de Bresson o seu edifício moral não a deixa alinhar nas maquinações de que se apercebe muito cedo. Resiste, revolta-se, sofre, até enfim ceder ao amor. O resto é precisamente igual. A história da estalajadeira tem esta variação, é certo, mas Diderot, ou melhor, o amo de Jacques, encosta logo à parede Bresson (ou Cocteau, não sei) com quase 200 anos de avanço e avisa-os que a personagem contada pela estalajadeira está mal feita. O parágrafo seguinte é o momento em que o amo de Jacques diz o que achou do que ouviu. Perante isto, que podia Bresson (ou Cocteau) fazer? Palmas, Denis!

 ...[N]ão fiquei de todo satisfeito com aquela jovem durante todo o decurso das manobras da dama de Pommeraye e da mãe. Nem um instante de temor, nem o mínimo sinal de incerteza, nem um remorso; vi-a prestar-se sem repugnância àquele longo horror. Tudo o que exigiram dela, nunca hesitou em fazê-lo; (...) pareceu-me tão falsa, tão desprezível, tão má como as outras duas... Senhora estalajadeira, vós contais bastante bem; mas não sois ainda profunda na arte dramática. Se queríeis que aquela jovem tivesse interesse, teríeis de lhe conferir franqueza e mostrá-la vítima inocente da mãe e de La Pommeraye, seria necessário que os tratos mais cruéis a arrastassem, apesar das suas resistências(...); era preciso preparar assim a reconciliação daquela mulher com o marido. Quando se introduz uma personagem em cena, é preciso que o seu papel seja uno; ora perguntarei à nossa encantadora estalajadeira se a jovem que conspira com duas mulheres pérfidas é a mesma mulher suplicante que vimos aos pés do marido... Pecastes contra as regras de Aristóteles, de Horácio, de Vida e do Corcunda.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Great Scott!

Gostava muito de saber escolher entre filmes de viagens no tempo que abusam de paradoxos diversos (Back to the Future ou Terminator) ou os que fogem deles como da peste (Primer ou Los Cronocrímenes). De Primer, filme de 2004, pressinto que irei gostar muito quando o compreender, mas ainda só o vi duas vezes (garantem-me que à quarta). O realizador Shane Carruth, um licenciado em matemática, quis fazer o mais correcto filme de viagens no tempo de sempre e decidiu não simplificar uma linha de texto que fosse. Quanto a esta última premissa posso garantir que é tudo verdade. Los Cronocrímenes, um filme espanhol de 2007, é bastante mais simples, igualmente baratinho (têm-se feito boas ficções científicas com pouco dinheiro e sem a armadilha de gadgets que arriscam anacronismos diversos em poucos anos), mas que, não fazendo cá cedências aos paradoxos que habitualmente são necessários a um enredo que pretenda bilheteira, conseguiu inventar uma história com um loop sem início, ou ou melhor, sem um catalisador do que virá (está) a acontecer, ou talvez ainda melhor, sem ser possível identificá-lo (escreveu-se muito que o filme não fazia sentido: um disparate). Peço desculpa por estas linhas, mas garanto que é dos melhores filmes de viagens no tempo que se fez e com uma viagem de apenas uma hora (há ainda um nu frontal que não estraga o filme). Destes filmes, espero apenas que nunca se deixem de fazer, e lá estarei para ver tudo, mesmo que o espectro seja tão largo que possa ir de Donnie Darko a The Butterfly Effect, inclusivamente (ou sobretudo), um filme que descobri em fóruns um bocadinho obscuros, chamado Frequently Asked Questions About Time Travel, que tem a seguinte sinopse: "While drinking at their local pub, three social outcasts attempt to navigate a time-travel conundrum." Acho que nunca uma sinopse me convenceu tão rapidamente a ver fosse o que fosse.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Ainda mais pianistas

Não podia acabar este assunto do noir, tragédia, pianistas, i had it all, etc., sem acrescentar este vídeo. Agora é que está tudo certo.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Mais pianistas

Num filme de personagens há tempo para caracterizá-los lentamente (o propósito por vezes nem é mais do que esse), e disso trataram muito bem Bergman, Woody Allen, Van Sant ou Wes Anderson. Quando é necessário tirar esse problema do caminho rapidamente e passar à acção (as voltas que agora é preciso dar para evitar "narrativa") há quem o saiba fazer bem, mesmo que existam uns quantos truques de algibeira. James Cameron foi bastante espectacular com Aliens, em poucos minutos, a distinguir uma dúzia de marines indiferenciados. Quando Apone acende um charuto assim que acorda da incubadora, está feito o personagem e quando Gorman vomita, também. Cameron a mostrar-nos que viu os seus filmes de guerra noutros tempos.

Nos film noir onde também havia esta urgência, o meu truque preferido foi sempre o do pianista. Se o detective, advogado ou low-life no geral souberem tocar piano, o personagem ganha imediatamente sensibilidade, inteligência, e um passado (até o Axl Rose ficava mais distinto atrás de um piano). Tem-se provado que não basta ser músico (deve estar para ser feito um filme sobre um baixista, e se calhar ainda bem); o pianista dos filmes é o carisma incarnado e com pouca margem para cedências. Se está agora neste bar nojento é porque a vida assim o tramou, mas antes miserável do que vítima (como, provavelmente, o baixista). Ainda melhor: foi de certeza ele quem se tramou, no acto clássico de sabotagem da felicidade - I had it all, and blew it, etc.

Quando Truffaut quis experimentar o seu noir (e devia querer muito, porque fê-lo logo depois d'Os 400 Golpes) compôs a história à volta de um pianista, para minha felicidade. De tanto ver o Charles Aznavour em VHS gravados pelo meu pai, nunca lhe suspeitei tanta pinta como em Disparem Sobre o Pianista, mas ei-lo. Escuso de dizer que o youtube abaixo é praticamente no início do filme.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Detour

Onírico, estranho, erótico, ambivalente e cruel. Como sempre, houve dois franceses - Raymond Borde e Ètiene Chaumeton - que teorizaram até ao impossível o cinema americano, e que criaram a expressão film noir para um determinado género do pós-guerra, que isolaram nestes cinco adjectivos: onírico, estranho, erótico, ambivalente e cruel. De todos os que conheço, o mais exemplar, quase manual de instruções, e o que preenche com maior precisão cada um dos cinco pontos é Detour, um filmezinho - tem 68 minutos -  de Edgar Ulmer (austríaco dos tempos da UFA, assistente de Murnau em Sunrise e, segundo o próprio garante, técnico genérico em M e Metropolis), que se diz ter custado 50 mil dólares e demorado pouco mais de uma semana a rodar.

Detour parece feito de erros técnicos, plot holes e situações tão pouco credíveis que custa entender ter chegado a ser exibido, mas é por pouco mais do que isto que parece nunca sairmos de uma sensação de estranho pesadelo. A femme fatale de Detour é pura acidez e imprevisibilidade demoníaca (ainda dei um salto da cadeira ali a certa altura). Em Network, Sidney Lumet disse que o trabalho mais difícil que teve foi convencer Faye Dunaway a resistir à tentação de humanizar a sua personagem (aparentemente é complicado para os actores). Para Ann Savage, a Vera de Detour e uma daquelas pessoas sem fotografia no IMDB, isto não parece ter constituído qualquer problema: Vera é a encarnação do Mal, sem hesitações. Al Roberts (Tom Neal, outro sem foto) é o arquétipo do anti-herói noir. Derrotado da vida e conformado, sem grandes convicções de finais felizes, calcula que tudo certamente irá correr mal. Sendo que 'tudo' é apenas uma viagem até à California, de boleia, e dois azares cirúrgicos (o filme tem 68 minutos, mas mais de metade destes são passados dentro de um carro sobre estrada projectada em tela).

O noir é um género fácil de gostar, e se há uma boa mão cheia de obras primas, também se fez muito lixo à sua conta, como se baixo orçamento e diálogos começados por suppose fossem em si uma receita de sucesso, mas posso garantir (eu e o Errol Morris, que diz de Detour ser o seu filme preferido de todos os tempos) que é impossível esquecer este milagre de austeridade e minimalismo e posso garantir que não é como os outros, mesmo que os compare aos melhores Wilder, Ray ou Aldrich.


O método científico

Pensei durante muito tempo que a duração dos genéricos nas séries era reduzida gradualmente, à medida que as temporadas se sucediam, para não entediar de morte quem está a ver. O Matt Groening explicou-me que, tendo cerca de 24 minutos para cada episódio dos Simpsons, acertava a duração do genérico se fosse necessário esticar um pouco o resto. Alguns não têm mais do que a situação do sofá, outros continuam tão longos como no primeiro episódio. Ao reconhecer isto fazia-o com alguma vergonha, porque significava que não tinham conseguido encher (digamos assim) os episódios dos genéricos longos. Muito contente com esta informação, resolvi que ia ser este um dos meus critérios da, senão qualidade, pelo menos confiança dos escritores no seu trabalho. Seinfeld, Curb Your Enthusiasm, Arrested Development estavam à frente nos exemplos bons e o brilhante mas inacreditavelmente longo genérico do cada vez mais chato Dexter deram-me razão por cinco minutos, até me lembrar que Sopranos, Wire, Treme, feitos com uma colagem de imagens usadas nos episódios à anos 80 gastavam três minutos que - abençoado tempo que vivemos - são invariavelmente transformados num mínimo que depende da destreza do espectador com o fast forward (parar no created by funciona bem em quase todas as séries). Foi portanto a reflexão mais inútil de toda a minha vida, mas estarei sempre do lado do genérico curto. Apetecia-me exagerar que poderia mesmo salvar uma série, mas o Lost (segundo melhor genérico de todos os tempos) também me cortou as vazas.

Parecendo que não, o parágrafo acima é uma introdução para comunicar que vi o Girls quase todo num fim-de-semana e já ganhou o prémio de melhor genérico de sempre. E tem outros méritos, vi-me obrigado a reconhecer.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Antes que deixe de ver isto, com o desgosto

É verdade que chegámos a comparar Mad Men a Hitchcock, e num certo sentido, já se fez piores comparações (ou pelo menos, não é mais arriscada que a habitual The Wire/Dickens). Aquilo a que se chamava ausência de narrativa em Mad Men era, tal como em Hitchcock (não me estou a rir, a sério), uma ausência dos mecanismos do mistério, mas não do suspense. Isto é, soubemos sempre tudo o que iria acontecer porque conhecemos de cor os anos 60 da América. Sabemos aquilo do Vietnam, de Kennedy e de Marylin Monroe. Sabemos que virão os Stones, Dylan e os Beatles. O próprio segredo de Don Draper é revelado ao espectador muito cedo. Exemplo de como tudo estava a ser bem conduzido é o episódio da crise dos mísseis de 1962, no qual é irrelevante saber que vai correr tudo bem. A angústia e o medo não sofrem nem um beliscão.

Ao terceiro episódio da sexta temporada é outra série de televisão. Não é que alguma vez Mad Men não tenha sido um desfile algo gratuito de vestidos, penteados e referências culturais mais ou menos obscuras, mas onde antes havia omnisciência, há agora muito chata previsibilidade e, pior ainda, má repetição, até à náusea, do que já funcionou.

A ideia central de Mad Men não era boa nem má, e por isso exigia excelente execução: um melodrama sobre a desadequação das pessoas ao seu tempo. Este desfecho, para onde a série caminha há demasiadas temporadas, começa a ser tão óbvio, fácil e arrastado, que cada novo indício (garrafas escondidas no escritório, o fim do glamour do adultério, pessoas que sugerem que se deixe de fumar) se torna quase ofensivo para quem está a ver.

Bem sei, não devia voltar sempre ao mesmo, mas em apenas doze episódios, David Simon contou esta história da desadequação de um homem ao seu tempo - na temporada dos estivadores de Wire - mas escolheu a tragédia, que, na verdade, era a única forma de o fazer. Seguindo o caminho do melodrama, só com muita destreza os criadores de Mad Men escapariam à telenovela (e escaparam, e escaparam, durante duas temporadas quase perfeitas e uma muito boa), o que não teria nada de mal se Mad Men não tivesse deixado há pelo menos dois anos de ser divertido.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

The Oscar always goes to

Não há muitas histórias simpáticas sobre Louis B. Mayer, fundador da MGM. Há mais sobre a imposição de contratos aos actores ou do entusiasmo com que recebeu o Código Hays do que boas recordações. Nem sequer foi com boas intenções que fez força para que nascesse a Academia. Serviu primeiro para meter no lugar os sindicatos de técnicos que então davam as primeiras chatices e criar um espírito corporativo entre actores, realizadores, produtores e argumentistas. Poucos anos depois, também estes (excepto os produtores, evidentemente) viriam a criar os seus sindicatos, pelo que esse propósito inicial de união morreu logo ali. Mas, dada a derrapagem moral a que os filmes pareciam estar a ceder, a entrega de prémios anuais para os melhores do ano haveria de trazer um propósito de integridade às produções dos estúdios. Esta intenção em 1927 não tem nada de estranho, mas que tenha chegado aos dias de hoje quase intocada sim. Talvez não seja assim tão notável. Afinal, o propósito da Academia foi, antes de outro qualquer, servir e proteger a indústria, e claro que ainda é assim (seja com Michelle Obama a explicar-nos o sonho do cinema, seja com mais uma tentativa trapalhona de trazer de volta o tempo de ouro dos musicais).

Se o melhor truque do diabo foi convencer-nos que não existe, o melhor truque da Academia foi convencer-nos que está em causa o melhor filme do ano, o que deve explicar porque tenho sempre tantos colegas na manhã seguinte a latejar a revolta por mais uma escolha extremamente injusta, ano após ano. Só não foi sempre assim se quisermos acreditar numa das boas lendas de Holywood e de Mayer: na primeira edição dos Oscares, ao saber da decisão do júri, que pretendia atribuir a Melhor Produção Artística a The Crowd de Kind Vidor (um bom filme, não obstante) e produzido pela sua MGM, não abandonou a sala até convencer os jurados a entregar o prémio a Sunrise,  do rival William Fox. Não terá sido a última vez que um Oscar foi bem atribuído (acho eu), mas duvido que se tenha voltado a permitir cedências destas a critérios românticos disparatados, mesmo que vindos do chefe.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013


«...nobody loves no one»

Chris Isaak é um one-and-a-half hit wonder mas ensinou-me três coisas: a dupla negativa e quem eram a Helena Christensen e a Laetitia Casta.

 

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Say what again!

The Breakfast Club

É costume, e bem, dizer-se de Nicholas Ray que foi o primeiro a trazer para o cinema a angústia da adolescência. They Live by Night e Rebel Without a Cause duram até hoje por muitas outras razões mas também por esse marco histórico bastante intencional. À minha geração, os de setenta, (e vá a alguns de vós de oitenta), ninguém soube falar tão bem (ou falar, sequer) como John Hughes. Nos dias que correm, Wes Anderson, Gus Van Sant, Noah Baumbach e outros mais novos, têm servido bem as pessoas dos sub-20, mas nos anos 80, enquanto eu crescia, o John Hughes era precioso.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

«I'm so sad, so very very sad»

Em 2006 torci o nariz ao de Caetano Veloso. Houve valor, até lata saudável, num homem de 65 anos a meter o pé na porta do indie, mas não fosse o meu respeito e o disco podia ter resvalado para um momento embaraçoso. Preferi não o ouvir muito.

Mas agora, no que pode ser chamado um segundo disco, vem Abraçaço. Se não me engano, tudo parece estar resolvido.

Estou Triste by Caetano Veloso on Grooveshark