quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O Luís Miguel Oliveira (cujas Aranhas ainda conseguem ter mais actividade do que este blog nos últimos seis meses), escreveu uma vez - paráfrase muito livre a partir daqui -  não gostar da expressão a magia do cinema porque o que existe é muito mais carpintaria, engenharia, enfim, outro tipo de trabalho manual. Esta imagem, das filmagens de M, é a ilustração perfeita desta ideia. 


quinta-feira, 13 de março de 2014

Um bocadinho de Godard num film noir (escusam de dizer que é ao contrário)

 

 
The Asphalt Jungle, 1950

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Estive desde 2008 à espera que voltasse a haver Televisão



segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Jason

Imaginem as seguintes premissas para uma história:

- Um fulano mascara-se de lobisomem para assaltar casas à noite, na convicção de que se for apanhado em flagrante as pessoas terão medo. Uma noite é fotografado e aparece nas notícias. Os lobisomens da cidade lêem os jornais nessa noite e decidem que é necessário matar o exibicionista.

- Ernest Hemingway, James Joyce, Scott Fitzgerald e Ezra Pound são jovens desenhadores de BD que vivem em Paris nos anos 20. Encontram-se em cafés, aconselham-se com Gertrude Stein, Fitzgerald queixa-se de Zelda, Hemingway de falta de dinheiro. Decidem assaltar um banco.

- Numa pequena cidade do oeste americano um forasteiro chega na sua bicicleta, é reconhecido por todos e recebido com consternação. O xerife sabe que ele voltou para ajustar contas do passado. A namorada diz-lhe que ninguém pensará mal dele se se recusar a enfrentá-lo. O forasteiro pede um mocaccino no saloon e conta a quem quiser ouvir que nunca se esqueceu da partida de xadrez com o xerife em que este o venceu em 28 jogadas. Marcam nova partida para o dia seguinte, ao nascer do sol.

- Athos é um velho mosqueteiro do rei em Paris, na república francesa do que parecem ser os nossos dias. É um homem extremamente chato que aborrece as pessoas que lhe dão dinheiro para uma garrafa de vinho com histórias de capa e espada intermináveis. A Terra sofre um ataque de marcianos e Athos consegue viajar até Marte e, com a ajuda da princesa local e do florete (contra pistolas de laser), salvar a Terra.

- Dois corcundas, assistentes de cientistas loucos que pretendem, respectivamente, dar vida a um morto e criar uma máquina para viajar no tempo, encontram-se no intervalo de almoço num restaurante e falam sobre banalidades, futebol, mulheres, uma ou outra ambição para o futuro. Acabam de almoçar, despedem-se com um aperto de mão, voltam para o trabalho.

Se não fosse por mais nada, já valia a pena ler um livro ao acaso de Jason, um norueguês de quarenta e muitos anos. Nem sei se interessa saber que os seus personagens são sempre pintados como animais diversos (cães, corvos, gatos, coelhos), sem qualquer ambição naturalista (os bichos estão mais perto de máscaras africanas do que de animais propriamente ditos). Ou que, com um domínio notável da linguagem de cinema, mimetiza nos seus quadros mudos de Buster Keaton, westerns de John Ford, filmes noir de Fritz Lang ou diversos géneros de filmes b de terror, ficção científica, ou histórias de gangsters. Nos livros de Jason, os seus heróis da BD são óbvios: declarada e humildemente plagia Pratt, Moebius, Hergé e Bilal. Em macguffins dignos do mestre, as premissas acima são sempre pretextos para temas mais simples e antigos (amor, traição, fim da infância, gente boa, gente má, etc.). Cada página tem sempre seis quadros, do mesmo tamanho.

Ainda assim posso garantir que quem ler pela primeira vez qualquer Jason vai dizer aos amigos que nunca viu nada semelhante e não é porque haja bebés comidos por zombies, adultos que se deslocam em andas em vez de carros, escolas de carrascos (com aulas de teoria sobre corte com machado vs corte com guilhotina e aulas práticas de tortura e confissão) ou porque um coelho diz a um cão que se tivesse o poder de matar impunemente qualquer pessoa no mundo começava pelos Radiohead.

É só porque nunca houve nada parecido com Jason na BD ou noutro sítio qualquer.

Jason, The Left Bank Gang, 2006

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

As ancas do Tom Hiddleston

Há um novo e bem-vindo blog indie (como se confirma pelo alojamento wordpress) nas ruas, escrito por aquela que é a pessoa mais bem informada do país sobre os assuntos em qualquer momento. Eu próprio, que já praticamente cheguei ao fim da internet, tenho dificuldades em manter este nível de actualidade (sabia da Karen O, não sabia dos Arcade Fire). Assim a Rita vá postando, e vocês vão lá passando, o bom gosto deixa de ter desculpa para nos passar ao lado.



segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Reboot

A minha relação com Elvis Costello esquematiza-se assim:

Momento 1 - Pessoas bem formadas dizem-me que o Elvis Costello é uma pessoa muito importante nisto da música. Em paralelo, listas diversas e diversas histórias da música popular dizem-me que alguns discos do Elvis Costello são muito importantes.

Momento 2 - Ouço uns quantos álbuns, com esforço; à terceira ou quarta música concluo que não percebo nada disto. Para além de me aborrecer muito, não consigo entender o que há ali de assinalável.

Momento 3 - Uma rádio passa uma canção bem esgalhada que mistura um rock lo-fi de bom gosto com um sentido de soul raro, paro o que estou a fazer, ouço até ao fim e concentro-me para ouvir com atenção o que diz o radialista no final. O radialista diz "estivemos com Elvis Costello, etc. etc.".

Momento 4 - ah...

Momento 5 - regresso ao Momento 2 e assim por diante.

Este fim-de-semana deu-se um destes Momento 3 e ouvi o I Want You (segundo me contou o agregado familiar, posso ser a única pessoa viva que nunca a ouviu e parece que há uma famosa versão cantada pela Fiona Apple). Uma interpretação tão teatralmente sofrida raramente faz alguma coisa por mim, mas aqui está tudo bem com isso. Há ainda um conjunto de pormenores importante: julgo que não sou só eu que pensa imediatamente no I Want You (she's so heavy) de Beatles.

Se repararem bem, as duas têm o título I Want You e foi este pormenor praticamente indetectável que me alertou para o restante. Há também em ambas o tema comum, a interpretação quase demasiado pessoal, repetição hipnótica (quer de palavras, quer do riff e ritmo), uma duração muito mais longa do que o habitual (pelo menos no habitual dos Beatles).

Mas uma não é uma versão da outra e estamos longe de plágio ou sugestão mesmo que a um nível muito tangencial. Se calhar sou obrigado a concluir que, intencional ou não, estou pela primeira vez perante um remake de uma canção. 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Boletim estatístico de 2013

Nada tenho contra listas do ano, é a falta de memória e de organização que não me deixam fazê-las. Em alguns casos também, provavelmente, a vergonha na cara. Ainda assim, um destes dias decidi ir ao meu last.fm ver que canções ouvi mais em 2013 e tive algumas surpresas. Umas dizem bem de mim, outras não, mas decidi começar o ano sob a égide da franqueza. Ouvi muitas coisas de 2013 de que gostei muito e talvez até conseguisse fazer a lista do ano pela primeira vez, onde estariam com certeza Arcade Fire, FIDLAR, Palma Violets, Salvia Plath, Bass Drum of Death, Foxygen (que só me prestei a ouvir em 2013) e até o disco de Devendra Banhart que aparece como desilusão do ano para montes de gente. Mas vamos antes ver que aberrações estatísticas saltam de uma lista honesta (a mais surpreendente é não haver nenhuma canção de Beatles no top 10, provavelmente a primeira vez que acontece nos últimos 15 anos). E há coisas ainda mais esquisitas. Eis as dez canções que ouvi mais vezes em 2013:

1
Dave Brubeck – Unsquare Dance

Dia 8 de Maio o Google Doodle comemorava o nascimento de Saul Bass com uma animação ainda melhor por ter sido ilustrada com o Unsquare Dance de Dave Brubeck. Nos três dias seguintes ouvi o tema 263 vezes, é assim que funciona a minha simples cabeça. Brubeck é, a par com Shane Carruth, a pessoa que mais se divertiu com o tempo. Sendo talvez a expressão musical mais criativa de sempre, o jazz pouco arriscou para lá do compasso quaternário (ainda que muito o tenha subvertido), mas Dave Brubeck fê-lo sempre desde que editou Time Out e notavelmente sem tornar as músicas em experiências de laboratório, muito pelo contrário. A prová-lo está Time Out ser, com Kind of Blue de Miles Davis, o disco de jazz que mais vezes se encontra em estantes de pessoas que não ouvem jazz. Unsquare Dance, que não está neste álbum, é, parafraseando Brubeck, um desafio a quem gosta de bater o pé (é mesmo difícil: "deceitfully simple, it refuses to be squared"). No final consegue ouvir-se o baterista Joe Morello a rir de alívio por ter conseguido chegar ao fim.


2
Waxahatchee – Blue Pt. II

Em doze meses esta rapariga lançou uns três álbuns, todos eles com uma mão cheia de canções eficazes. Esta, toda herança dos anos 80 de Kim Deal, foi a que ouvi mais mas podia ter sido outra. Há mais cinco ou seis cuja estatística deve andar muito perto. Todas as canções parecem ter a fórmula de uma melodia fofinha sobre uma linha de baixo dura e letras com métricas empenhadas em não deixar nenhuma nota por cantar.


3
Mina – Fa' Qualcosa

Em Agosto de 2012 estive num café em Paris chamado Au Limonaire (no relation, apesar da piada; um limonaire é uma espécie de orgão) no qual todas as noites, a seguir ao jantar, se fechavam as portas (ninguém entra, ninguém sai) e alguns dos clientes mais habituais subiam a um pequeno palco onde já estavam um piano, umas guitarras, contrabaixo, acordeão e saxofone, correndo, através de Montand, Brel, Piaf, Aznavour ou Adamo, o repertório da chanson française de uma ponta à outra. Este sítio estava tão perto de ser um café de um filme da Nouvelle Vague (só faltava uma máquina de flippers) que se teme logo não passar de armadilha para turistas. Mas não é.  Numa dessas noites, uma das empregadas de mesa subiu ainda de avental ao estrado onde estava a banda e destacou um ou dois versos do que iria cantar a seguir. Explicou que gostava muito do crescendo da frase "Parla, Fa' Qualcosa", e de uma outra, que talvez lhe parecesse mais gráfica do que a frase merecia, mas era evidente que lhe era especial: "mandami dei fiori anche se non sono morta". O original não é tão bom como o que ela cantou, mas foi sendo o suficiente. You have to see past the kitsch, como se diz no Greenberg de Noah Baumbach.


4
Fred Buscaglione – Guarda che luna

Esta é consequência da anterior; uma lembrou-me a outra, só por serem ambas em italiano. Fred Buscaglione era um cantor/actor que vestia sempre a personagem de um gangster cretino, donde a minha simpatia. O sofrimento desproporcionado e canastrão desta canção é irresistível ao ponto de me sensibilizar sem ponta de ironia. Talvez o século XX não seja o melhor cartão de visita da canção italiana, e tanto esta como a música anterior da Mina estão mais perto do telefone branco do que do grande cinema daquela terra, mas nem só de tarantellas e do Bella Ciao vive uma noite de copos. Com vídeo percebe-se melhor.


5
Charlie Haden – Spiritual

O álbum Steal Away, onde está este Spiritual, pareceu-me estranho por duas razões. Charlie Haden tem mais do que simpatia pelo Partido Comunista (as gravações com Carlos Paredes não foram só um acaso). Chegou a ser preso pela PIDE quando decidiu dedicar a sua Song for Che aos revolucionários das colónias num concerto do Festival de Jazz de Cascais. É alguém que devem ter presente quando se lembrarem de fazer piadinhas com baixistas, portanto. Ter escolhido fazer um álbum com raízes tão fortes de gospel e música espiritual foi uma surpresa para mim. Por outro lado, as melodias e lirismo das linhas de baixo não pareciam a escolha mais óbvia de um contrabaixista que fez nascer o free jazz com Ornette Coleman. Quando penso em contrabaixos, terei sempre Ray Brown num primeiro lugar muito acima de qualquer outro, mas é provável que seja Charlie Haden a ocupar o segundo.


6
Lady Lamb the Beekeeper – You Are the Apple

A única razão para esta pessoa não estar mais bem colocada é que ouvi o álbum em repetição durante muito tempo e nenhuma música ganhou às outras. É mais uma miúda de 21 anos ou coisa que o valha que só pode ser comparada com Waxahatchee pela facilidade com que faz canções, mas as desta são temas que terão sete minutos se assim for preciso, sem medo de colagens ou momentos de anti-clímax. É verdade que é em Taxidermist Taxidermist que está o génio do álbum, mas foi por todas as restantes serem tão boas como You Are the Apple, que o ouvi tantas vezes. Estava convencido que ia aparecer para aí em listas de álbuns do ano, pelo que um de nós (eu ou o conjunto universal de publicações de música) não percebe nada disto.


7
Billie Holiday – The Man I Love

Nisto das vozes que cantam standards, já tenho a vida resolvida há muitos anos: Billie Holiday e Ella Fitzgerald cumprem em todas as situações possíveis. A introdução desta versão de The Man I Love aponta quase sem margem para dúvidas para um qualquer Woody Allen, mas é mais provável que me tenha posto a ouvi-la depois de ter visto em casa os Fabulosos Irmãos Baker (posso estar enganado, mas acho que é este tema que a personagem de Michelle Pfeiffer canta quando aparece pela primeira vez no filme).


8
Everything Everything – Cough Cough

A primeira canção que ouvi em 2013. Fiquei muito satisfeito por achar que tinha descoberto uns novos Battles, Animal Colective ou por aí. Afinal não, o resto do álbum é uma merda, mas também há mérito nisto de se fazer uma canção assim. Grande bombo, harmonizações vocais com tosses e uma pianada a lembrar os melhores tempos de Prince. Foi uma óptima forma de começar o ano.


9
Jackson Scott – That Awful Sound

Nada de especial aqui, mas eu fico satisfeito com uma música em que tudo é tão certinho. Esta canção é, do começo ao fim, uma canção de Pixies com Daniel Ash dos Love and Rockets a vocalista. Quando ouço o solo de guitarra, tenho dificuldades em jurar, mesmo que tivesse a vida em jogo, que não é o Joey Santiago que ali está. Também é de 2013, e nem me lembro se ouvi o resto do álbum. 


10
Pixies – Vamos

Não vou agora pôr-me aqui a falar dos Pixies.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Goodbye, Monkeyface.

Sendo um dos pontos mais altos do melodrama em cinema, dificilmente se poderia imaginar Letter From an Unknown Woman, de Max Ophüls, com outra pessoa que não Joan Fontaine. A carta que escreve começa com "I think everyone has two birthdays – the day of his physical birth and the first day of his conscious life" e segue com "as hard as it may be for you to realize, from that moment on I was in love with you. Quite consciously, I began to prepare myself for you." Todo o filme trata da fusão entre a fantasia romântica de Lisa e a sua própria existência, e só por isso não há nada de paradoxal na tranquilidade da obsessão que Joan Fontaine representa. O que se passa em Rebecca e em Suspicion não é a mesma coisa, mas a crença num determinado tipo fatalista de amor, é. Tratando-se de textos relativamente distantes, não é abusivo concluir que muito do tom melodramático destes filmes se deve a ela, talvez a actriz que melhor soube transpor para o sonoro um determinado tipo de interpretação característica do cinema mudo.

Como os últimos dias têm provado, não vale a pena querer tirar de uma fotografia interpretações maiores do que o que lá está (e mesmo assim...), mas esta de Joan Fontaine depois de ter recebido o Óscar por Suspicion, é a imagem, filmes excluídos, que ilustra melhor tudo o que quis dizer no parágrafo de cima.


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Código

- Theo, this is Matthew.
- You were right. He's American.
- Hi.
- I've seen you around. You've been coming to all the Nicholas Ray's.
- Yeah. I really like his movies.                   
- What? They Live By Night?
- Mm-mm. More like... Johnny Guitar and Rebel Without a Cause.
- You know what Godard wrote about him?
- No. What?
- "Nicholas Ray is cinema."

Este diálogo diz de Bertolucci nos Sonhadores duas coisas. Que gosta tanto de enviar recados ou piscadelas de olho, quanto tem pouca paciência para subtilezas. Estamos avisados: este não é um filme sobre cinema mas sobre cinéfilos, sobretudo um determinado tipo deles. Não que seja possível saber o que pensa Bertolucci de diálogos tão arriscados entre três jovens e, na verdade, o que se passava à porta da Cinemateca Francesa em 1968 não devia fugir muito daquilo. Mas o importante é que se tratava de dois franceses a educar um americano sobre o seu próprio cinema, um orgulho europeu talvez demasiado celebrado, mas que se foi verdade em algum momento, foi naquele.

Eu e Tu, o seu último filme, também tem uma mão cheia de recados como o psicólogo de cadeira de rodas à imagem do próprio Bertolucci que assim está há uns anos, ou do frame final congelado como em Os 400 Golpes. O guião vem de um livro, feito de uma história real de final muito pouco feliz, segundo me diz a internet, mas que neste caso (do filme), apesar de torturado deixa um sabor a ternura quando acaba. Substituindo tortura por melancolia, e sendo esta também uma história de manos, temos praticamente a marca de água de todos os filmes de Wes Anderson, embora este paralelismo não seja, de certeza, propositado.

Mas um outro foi-o e muito. A certa altura, o rapaz, Lorenzo, lê as primeiras páginas de O Vampiro Lestat de Anne Rice e (penso que só a partir daí) todos os códigos de filmes de vampiros entram em acção. Não só os mais óbvios como as duas camas lado a lado nas quais os irmãos dormem como em caixões, ou quando acordam ao início da noite em simultâneo, quando ele lê de cabeça para baixo ou, já no final, a hesitação em sair para a luz da manhã. Há uma clandestinidade, há caça (por medicamentos num momento, e por comida noutro), há presas indefesas (a avó primeiro, a mãe depois). Há planos de filmes de vampiros como na cena em que a Olívia se debruça sobre a madrasta que dorme e mesmo uma ligeira perversão incestuosa (felizmente, mesmo ligeira).

Com a enchente de filmes de vampiros da última década e meia, a pergunta que decerto cada realizador faz a si mesmo quando começa um é "não podendo escapar aos códigos, é possível escapar ao cliché?". Como no western, o que define o género não é a mera presença de cowboys mas a utilização de códigos específicos. E se a situação se inverter e forem usados os dos filmes de vampiros num filme sem vampiros? Ao aplicá-los de forma tão consciente quanto controlada, Bertolucci não fez um filme de vampiros, mas deixou-nos no meio de um, sem recorrer a caninos sobrenaturais, mas a cinema. Isto é, uma pessoa que, por absurdo, nunca tivesse visto um filme de vampiros, nunca teria percebido que estava num em Eu e Tu.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A bit of explaining to do

Many critics and viewers have felt that Blue Jasmine is Woody Allen’s best film since Match Point. The accompanying implication is that the intervening works – seven movies, starting with Scoop and ending at To Rome with Love – are just international chaff, too lightweight to get interested in. If you think, as I do, that such a judgment confuses solemnity with seriousness, that Match Point represents one of the worst dips in Allen’s career, and that the later films were often funny and showed at least flickers of artistic life, you have a bit of explaining to do.

The chief difference between Blue Jasmine and Match Point is that the new film is magnificently acted, where the other wasn’t really acted at all. [podem continuar]

Michael Wood, no LRB. Admitindo que não seja o melhor, é provavelmente o mais inteligente dos críticos de cinema.


Eu já ia ao King quando ainda era cool

Há um fenómeno, já reflexo, que leva algumas pessoas a resumir num nome ou numa obra o gosto dos outros quando este é levado para caminhos mais, digamos assim, complexos. Às vezes é condescendente ("eu devo ser muito burro"), outras ofensivo ("não acredito que eles gostem mesmo daquilo"), mas o fundamental é que, por norma, este fenómeno é sempre representado pela mesma entidade. O cinema e a literatura têm dois grandes clássicos: Bergman no geral para o primeiro e Ulisses de Joyce em particular, para o segundo. Na música o alvo costuma ser o free jazz, na pintura, Jackson Pollock, e assim sucessivamente.

José Rodrigues dos Santos fez um conhecido brilharete destes há pouco tempo quando disse não acreditar que alguém pudesse ler o Ulisses com prazer, e as caixas de comentários da crítica de cinema do Público devem ter uma ocorrência do termo 'Bergman' superior à das próprias críticas como em "vocês que só vêem Bergman, mas na verdade odeiam cinema" ou o não menos popular "eu gosto de cinema, mas não vejo só Bergman, também gosto de ir ver uma comédia romântica", como se Bergman (ou Joyce ou Ornette Coleman) fosse uma praga que destrói toda a criação em volta.

Não há nada de fascinante nestas pessoas (além disso são muitas) mas há na escolha do estandarte da indignação. Eu próprio gostaria de ser um ("tu dizes que gostas de blogs mas só lês Sérgio Gouveia"), só que é necessário uma obra mais vasta e, muito provavlemente, mais genial, pelo que é uma aspiração que não alimento nesta fase da minha carreira.

Vai havendo quem o consiga e foi assim que o King foi para as salas de cinema o que o free jazz foi para os géneros musicais, e este estatuto é um dos seus feitos. Ontem fechou, infelizmente sem grande surpresa. Como se diz aqui na Noite Americana, fechou porque não lhe deram de comer. As salas vazias dos últimos anos não eram bom augúrio, e sinceramente não sei dizer se há culpados, ou melhor, não sei dizer quais são. Mas posso ter pena na mesma. O King foi o cinema onde vi mais filmes e seguramente onde vi os melhores (falando só em estreias comerciais). Fechou ontem sem enchentes (nem perto de meia sala), mas com uma nostalgia generalizada entre os presentes e com sessões de Ozu e Bertolucci, o que não deixa de ser bonito, sobretudo porque com certeza não o fizeram de propósito.

O testemunho do título de cinema-para-pseudos-de-óculos-de-massa-e-gola-alta-que-vêem-filmes-que-não-gostam passa agora para o Nimas (na verdade, já o partilhava com o King, por vezes), e para provar que está à altura, começa já em Dezembro uma retrospectiva de Bergman.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

De novo Paul Newman e o Método


Desta vez com Rocky Graziano para Somebody Up There Likes Me.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

I'm not drunk. I'm lame.


Esta imagem está há alguns anos na parede da sala de dois amigos e resume quase todo o imaginário que eu tinha de The Hustler antes de o ver. Muito por isto, e por Paul Newman, quando me decidi a fazê-lo, pensei que ia ver um filme no nível de conforto de The Sting, com intrujas, vigaristas, hustlers, que são antes de tudo cavalheiros. Manners before morals podia ser a tagline de uma certa linha de protagonistas não tão anti-heróis assim. Dez minutos pelo filme adentro e, mesmo surpreendido com a luz dura da fotografia, a insistir num noir já fora de moda (o filme é de 1961), achei ainda que sabia perfeitamente o que estava a ver, isto é, o grande precursor das narrativas do talento humilhado de Karate Kid, Rocky III, etc. Se fizesse como Breton e Vaché e mudasse de sala logo que compreendesse o guião ou me aborecesse, provavelmente não teria deixado terminar a primeira partida entre Paul Newman e Jackie Gleason (apesar de não haver nada de errado em nenhum momento até aqui). 

É no bar de um terminal de autocarros durante a noite, que o caso muda de figura e a vulgaridade do filme termina abruptamente. Um encontro de madrugada no único bar ainda aberto da cidade, diz tudo o que precisamos de saber sobre o homem e a mulher que o protagonizam. Já não é necessário revelar que bebem (até já estão a beber café nesse momento), a solidão nunca estará escrita em diálogos e a conversa na mesa é mantida próxima do zero, até que Paul Newman finalmente adormece. Do outro lado da mesa está Piper Laurie, que nunca deixará de aparecer em literal segundo plano, por vezes de forma quase invisível e que, seja pelo que faz seja por ter (muito) melhor texto, nunca mais deixará o filme pertencer a Paul Newman ou a qualquer outro.

Laurie, e o momento tardio em que aparece lembram a mulher perturbada de Detour, mesmo fisicamente. Laurie lembra as personagens quebradas de histórias de Flannery O'Connor. Esse momento no filme transporta-o definitivamente para o ambiente noir que estava prometido e a luz fica mais dura, as sombras mais abundantes e mais negras, e os diálogos tornam-se mais cadenciados, mais angustiados e cruéis. A tragédia espreita, adeus Karate Kid, e esta convicção devemo-la inteiramente a Piper Laurie.

Porque a personagem é mais forte, embora mais estragada e irreparável, sente-se uma inversão dos papéis clássicos de um noir. Parece ser Eddie, o personagem de Paul Newman quem tem para onde continuar após o azar, enquanto que o destino de Sarah está inapelavelmente para lá do ponto de não retorno. Num momento feliz, durante um picnic, Eddie responde, depois de um comprometido silêncio ao primeiro "I love you" de Sarah, com "you need the words?" Sarah diz "Yes, I need them very much. If you ever say them I'll never let you take them back." As respostas de Sarah são sempre relativamente inesperadas, mas é Piper Laurie que lhe dá muito mais do que o texto. É a personagem mais complexa, mas também a mais inteligível quando termina o filme.

Piper Laurie voltaria quinze anos mais tarde a um papel em que ultrapassou em muito o texto, mas desta vez num dueto espectacular com Sissy Spacek, ambas a encerrar para sempre as interpretações de mãe e filha em Carrie. O remake com Julianne Moore irá provar que esta relação de amor, posse, dor que faz parte do melhor do imaginário popular do cinema está muito menos no texto do guião, do que nestas duas actrizes e na sorte do seu encontro.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Exacto, exacto!

Numa entrevista recente, Stan Lee disse estar muito satisfeito com todas as adaptações das suas criações ao cinema. Por criações de Stan Lee entende-se quase tudo o que existe em filme de super-heróis dos últimos anos com excepção de Batman e Super-Homem, ou seja, o Homem-Aranha, Hulk, Homem de Ferro, Quarteto Fantástico, a maior parte dos Vingadores, os X-Men, enfim, o filão principal da mina de ouro. No entanto acrescentava que não consegue compreender um pormenor importante: por que raio são todos os heróis tão atraentes? De facto todos são.

Convenhamos que quando falamos de cinema não costuma haver pessoas repulsivas no ecrã, e nem os não actores do neo-realismo italiano eram desagradáveis. O pai em Ladrões de Bicicletas não envergonhava uma fotografia de grupo do star system do seu tempo, nem as pessoas de carne e osso do experimentalismo de Cassavetes em Shadows eram raparigas e rapazes feios.

Ainda assim, Stan Lee tem razão. Tudo parece agora um pouco mais grave como num episódio de Morangos com Açúcar. Já não é uma questão de morte aos feios, mas de morte à mediania, ao simpático, ao jeitoso. Que seria hoje do sorriso manchado de tabaco da Anna Karina?

Confesso que não penso assim tanto no assunto, sou relativamente conformado, ou melhor, indiferente à situação e, se as há, não consigo pensar nas consequências desta tendência ou se são irreversíveis.

Só que pontualmente o problema torna-se ridículo quando, para um remake de Carrie, se convida a miúda da foto abaixo para representar a rejeitada de um liceu americano. Enfim, ninguém aqui quer ofender a Sissy Spacek, mas que raio procuraram os produtores no casting (nem vale a pena ir mais longe e perguntar para que precisamos de um remake de Carrie)? Uma boa ideia teria sido começar por ler o que achou da interpretação original Pauline Kael em 1976: "Sissy Spacek uses her freckled pallor and whitish eyelashes to suggest a squashed, froggy girl who could go in any direction; at times, she seems unborn - a fetus." Ao invés, isto.


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Willie Mosconi* ajuda Paul Newman com o Método


*

Um post em forma de lista

Haverá bons filmes de desporto para além dos de boxe? Há uns quantos filmes que se tornaram relativamente populares sobre beisebol (sobretudo com ligas amadoras), futebol americano (show me the money), golfe (Kevin Costner) e, claro, o filme que cruzou futebol, Stallone e A Grande Evasão (só agora me ocorreu que o nome Grande Evasão é parecido com Grande Ilusão - este poder de associação...). Está nas salas também um filme de Fórmula 1 e, de facto, os anos 80 do automobilismo parecem ter matéria para inventar um género, embora também existam coisas como Dias de Tempestade. Penso que é impossível fazer um bom filme sobre ciclismo (há - outra vez - um com o Kevin Costner, de bigode), sobretudo nos dias que correm. O Tour deve ser extremamente cinematográfico, mas tremo de pensar num filme sobre "o drama do dopping" (e ainda mais sobre Lance Armstrong, que, aposto, já estará em produção em algum sítio). Como não é possível fazê-lo sem o mencionar (ao dopping), e como não estou a ver que seja possível mencioná-lo sem mau gosto, então esperemos que não aconteça nunca. O basquete oscila entre o Lobijovem (nunca se fala dos bons momentos de tradução em Portugal, mas há um ou outro que correu muito bem) e Raiva de Vencer (dos quais este não é um exemplo), um filme dos anos 80 com o Gene Hackman que me comove sempre um bocadinho, se não por mais nada, por vê-los todos a jogar de All Star calçadas. Até hoje não sei se devo considerar desporto actividades nas quais se pode (deve até) beber pints e fumar. De certezinha que existe mais do que um filme sobre dardos, mas não conheço nenhum, os Coen fizeram a obra definitiva sobre bowling, e o Scorsese tem aquele mistério na carreira chamdo A Cor do Dinheiro, sobre o qual nunca saberei se poderia vir a ser um bom filme caso o Tom Cruise nunca tivesse nascido. Acho que nem assim. E finalmente - era aqui que eu queria chegar - após adiar durante anos por total falta de interesse (eu não sei jogar snooker e mais depressa fico a ver uma partida de curling na televisão) vi o The Hustler e não tenho pensado noutra coisa, mas agora fica para a semana.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Dexter, Dexter (um post sem spoilers)

Vou contar-vos um segredo. O último episódio de The Wire não é muito bom. E a última temporada impede a série de ser um 10/10 absoluto. Se não me estiver a esquecer de nada, só os Sopranos souberam acabar uma série de televisão com génio. Algumas souberam acabar com dignidade, outras não, e outras ainda, mesmo fechando sem ponta dela, ficaram para a História da televisão (o Twin Peaks, para começar).

O público das séries é tramado. Chega-se a um final e lêem-se desabafos que envolvem ora traição, ora desejos de morte, depois de anos de posse e competição. Hoje numa esplanada, um miúdo de dezasseis anos dizia ter optado pelo American Horror Story em vez do Walking Dead e não se ter arrependido. Nos comentários das redes sociais as pessoas do Breaking Bad achincalham as do Dexter. Suponho que isto é um fenómeno de televisão. Tirando alguns tolinhos, não se concebe que alguém diga que optou por Ford em vez de Hawks, Rossellini em vez de De Sica, Mizoguchi em vez de Ozu, Truffaut em vez de Godard (por acaso este é comum), Keaton em vez de Chaplin (olha este também; esqueçamos todo este parágrafo).

Somos (já cá estou dentro) um público competitivo que defenderá até ao fim o seu protegido. Se o vimos crescer durante dez anos, a situação descontrola-se, e inevitavelmente viramo-nos contra quem o criou. O equilíbrio em ficção de televisão é difícil, não há espaço para obras de autor. É um equilíbrio entre ter audiências ou ser cancelado. E se tem audiência é muito provável que a corda seja esticada até quebrar e ter de se concluir a série já depois de destruída. Não há muita margem de manobra para os argumentistas e, outro segredo, não é fácil manter um argumento e um guião no topo durante 60 a 80 horas. O ideal seria ter os argumentistas fechados durante todo o período. Não foi mais a incompetência dos criadores de Lost do que as cedências aos disparates que o povo ia dizendo (cheguei a ler sugestões em fóruns inacreditáveis que deram em episódios quase ipsis verbis) que o tornaram num dos desenvolvimentos mais patéticos de sempre de uma história.

E agora o Dexter, coitado, que terminou com uma temporada horrível, porque na verdade já não havia nada a fazer. Já não podia ser salvo (ainda assim poder-se-ia ter baixado um pouco menos os braços) porque há anos que era tudo um bocado merdoso. Se o ouvisse dizer mais um vez que tinha encontrado "finalmente" alguém a quem contar o seu segredo (acho que foram umas quinze pessoas, num elenco de vinte e cinco), eu próprio podia ter abraçado a carreira da psicopatia. Só que este último episódio, ao contrário do resto da temporada, não é nada mau. Chega a ser bom.

Talvez as pessoas (as pessoas estão muito zangadas) se tenham esquecido que gostaram inicialmente de Dexter por causa de uma boa premissa, um bom personagem, mas também pelo ambiente desconfortável que a primeira temporada - mas só a primeira - soube criar. Dexter foi um personagem negro e imprevisível apesar de todas as suas rotinas (imprevisibilidade que vem de ser um psicopata, toda a gente, escritores incluídos pareceu querer deixar isto de lado). Havia mais claustrofobia, mais sangue, mais suor (mas curiosamente menos lágrimas), tudo era ligeiramente mais mórbido, só o suficiente para deixar um desconforto sinistro. Dexter era uma série que já estava condenada, que cometeu demasiados erros, mas este episódio, com um tom e estilo tão semelhantes ao dos primeiros, foi como um rebuçado que os criadores  da série quiseram oferecer, mas que a julgar pelas reacções pode ter vindo tarde demais. Pela minha parte foi um esforço notado e bem-vindo.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Nem tenho a certeza que vissem os filmes um do outro



To Catch a Thief - Alfred Hitchcock


The Horse Soldiers - John Ford

terça-feira, 17 de setembro de 2013

"It's a hard world for little things" (ou "coitadinho de quem é pequenino")



Quando se usa crianças em filmes, a tentação de criar adultos em ponto pequeno, mas melhores, ganhou quase sempre. É o elogio da inocência como sinónimo de bem e até de inteligência, que atingiu o seu ponto mais baixo e perverso com a criança grande Forrest Gump. A utilidade destas personagens é normalmente a de compasso moral dos adultos com quem contracenam. Spielberg, de quem nunca se poderá dizer que não sabe recriar a infância, teve sempre como tema este confronto entre um mundo bom e um corrompido e os únicos bons adultos são os que conseguem recordar (de forma sempre incompleta, claro) o que é voltar a ser uma criança.

A infância é um tema fascinante, mas mais vasto. É incompreensão (também do mal, sim, mas não como oposto ao bem), é uma imaginação descontrolada que por vezes cria fantasias negras (tive os piores pesadelos que me lembro antes dos dez anos), e portanto, medo. É um território de medo e de medos de que nunca nos esquecemos. Hitchcock lembrava-o frequentemente e era essa a sua forma de avaliar se estava a criar bom ou mau terror. Comparava sempre com o que o assustava nas histórias que lhe contavam em criança.

Dois filmes de fácil associação - Night of the Hunter de Charles Laughton e El Espíritu de la Colmena de Victor Erice - cumprem melhor do que qualquer outro que me lembre este retrato difícil. Não só o medo, embora em parte seja esse o grande tema, mas a curiosidade, a ingenuidade (ao serviço de nada, está só lá) e, o que talvez falte em outros filmes, uma forma de pensar menos lógica, mais aleatória, do que conseguimos compreender enquanto adultos, mas nem por isso correcta. Há ainda tudo o resto como a inocência e bondade, a ligação a manos, ou a relação de confiança (e de desconfiança) com os pais. É um conjunto que raramente atingiu um carácter tão total como nestes dois filmes.