quarta-feira, 9 de outubro de 2013

I'm not drunk. I'm lame.


Esta imagem está há alguns anos na parede da sala de dois amigos e resume quase todo o imaginário que eu tinha de The Hustler antes de o ver. Muito por isto, e por Paul Newman, quando me decidi a fazê-lo, pensei que ia ver um filme no nível de conforto de The Sting, com intrujas, vigaristas, hustlers, que são antes de tudo cavalheiros. Manners before morals podia ser a tagline de uma certa linha de protagonistas não tão anti-heróis assim. Dez minutos pelo filme adentro e, mesmo surpreendido com a luz dura da fotografia, a insistir num noir já fora de moda (o filme é de 1961), achei ainda que sabia perfeitamente o que estava a ver, isto é, o grande precursor das narrativas do talento humilhado de Karate Kid, Rocky III, etc. Se fizesse como Breton e Vaché e mudasse de sala logo que compreendesse o guião ou me aborecesse, provavelmente não teria deixado terminar a primeira partida entre Paul Newman e Jackie Gleason (apesar de não haver nada de errado em nenhum momento até aqui). 

É no bar de um terminal de autocarros durante a noite, que o caso muda de figura e a vulgaridade do filme termina abruptamente. Um encontro de madrugada no único bar ainda aberto da cidade, diz tudo o que precisamos de saber sobre o homem e a mulher que o protagonizam. Já não é necessário revelar que bebem (até já estão a beber café nesse momento), a solidão nunca estará escrita em diálogos e a conversa na mesa é mantida próxima do zero, até que Paul Newman finalmente adormece. Do outro lado da mesa está Piper Laurie, que nunca deixará de aparecer em literal segundo plano, por vezes de forma quase invisível e que, seja pelo que faz seja por ter (muito) melhor texto, nunca mais deixará o filme pertencer a Paul Newman ou a qualquer outro.

Laurie, e o momento tardio em que aparece lembram a mulher perturbada de Detour, mesmo fisicamente. Laurie lembra as personagens quebradas de histórias de Flannery O'Connor. Esse momento no filme transporta-o definitivamente para o ambiente noir que estava prometido e a luz fica mais dura, as sombras mais abundantes e mais negras, e os diálogos tornam-se mais cadenciados, mais angustiados e cruéis. A tragédia espreita, adeus Karate Kid, e esta convicção devemo-la inteiramente a Piper Laurie.

Porque a personagem é mais forte, embora mais estragada e irreparável, sente-se uma inversão dos papéis clássicos de um noir. Parece ser Eddie, o personagem de Paul Newman quem tem para onde continuar após o azar, enquanto que o destino de Sarah está inapelavelmente para lá do ponto de não retorno. Num momento feliz, durante um picnic, Eddie responde, depois de um comprometido silêncio ao primeiro "I love you" de Sarah, com "you need the words?" Sarah diz "Yes, I need them very much. If you ever say them I'll never let you take them back." As respostas de Sarah são sempre relativamente inesperadas, mas é Piper Laurie que lhe dá muito mais do que o texto. É a personagem mais complexa, mas também a mais inteligível quando termina o filme.

Piper Laurie voltaria quinze anos mais tarde a um papel em que ultrapassou em muito o texto, mas desta vez num dueto espectacular com Sissy Spacek, ambas a encerrar para sempre as interpretações de mãe e filha em Carrie. O remake com Julianne Moore irá provar que esta relação de amor, posse, dor que faz parte do melhor do imaginário popular do cinema está muito menos no texto do guião, do que nestas duas actrizes e na sorte do seu encontro.

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