terça-feira, 24 de setembro de 2013

Dexter, Dexter (um post sem spoilers)

Vou contar-vos um segredo. O último episódio de The Wire não é muito bom. E a última temporada impede a série de ser um 10/10 absoluto. Se não me estiver a esquecer de nada, só os Sopranos souberam acabar uma série de televisão com génio. Algumas souberam acabar com dignidade, outras não, e outras ainda, mesmo fechando sem ponta dela, ficaram para a História da televisão (o Twin Peaks, para começar).

O público das séries é tramado. Chega-se a um final e lêem-se desabafos que envolvem ora traição, ora desejos de morte, depois de anos de posse e competição. Hoje numa esplanada, um miúdo de dezasseis anos dizia ter optado pelo American Horror Story em vez do Walking Dead e não se ter arrependido. Nos comentários das redes sociais as pessoas do Breaking Bad achincalham as do Dexter. Suponho que isto é um fenómeno de televisão. Tirando alguns tolinhos, não se concebe que alguém diga que optou por Ford em vez de Hawks, Rossellini em vez de De Sica, Mizoguchi em vez de Ozu, Truffaut em vez de Godard (por acaso este é comum), Keaton em vez de Chaplin (olha este também; esqueçamos todo este parágrafo).

Somos (já cá estou dentro) um público competitivo que defenderá até ao fim o seu protegido. Se o vimos crescer durante dez anos, a situação descontrola-se, e inevitavelmente viramo-nos contra quem o criou. O equilíbrio em ficção de televisão é difícil, não há espaço para obras de autor. É um equilíbrio entre ter audiências ou ser cancelado. E se tem audiência é muito provável que a corda seja esticada até quebrar e ter de se concluir a série já depois de destruída. Não há muita margem de manobra para os argumentistas e, outro segredo, não é fácil manter um argumento e um guião no topo durante 60 a 80 horas. O ideal seria ter os argumentistas fechados durante todo o período. Não foi mais a incompetência dos criadores de Lost do que as cedências aos disparates que o povo ia dizendo (cheguei a ler sugestões em fóruns inacreditáveis que deram em episódios quase ipsis verbis) que o tornaram num dos desenvolvimentos mais patéticos de sempre de uma história.

E agora o Dexter, coitado, que terminou com uma temporada horrível, porque na verdade já não havia nada a fazer. Já não podia ser salvo (ainda assim poder-se-ia ter baixado um pouco menos os braços) porque há anos que era tudo um bocado merdoso. Se o ouvisse dizer mais um vez que tinha encontrado "finalmente" alguém a quem contar o seu segredo (acho que foram umas quinze pessoas, num elenco de vinte e cinco), eu próprio podia ter abraçado a carreira da psicopatia. Só que este último episódio, ao contrário do resto da temporada, não é nada mau. Chega a ser bom.

Talvez as pessoas (as pessoas estão muito zangadas) se tenham esquecido que gostaram inicialmente de Dexter por causa de uma boa premissa, um bom personagem, mas também pelo ambiente desconfortável que a primeira temporada - mas só a primeira - soube criar. Dexter foi um personagem negro e imprevisível apesar de todas as suas rotinas (imprevisibilidade que vem de ser um psicopata, toda a gente, escritores incluídos pareceu querer deixar isto de lado). Havia mais claustrofobia, mais sangue, mais suor (mas curiosamente menos lágrimas), tudo era ligeiramente mais mórbido, só o suficiente para deixar um desconforto sinistro. Dexter era uma série que já estava condenada, que cometeu demasiados erros, mas este episódio, com um tom e estilo tão semelhantes ao dos primeiros, foi como um rebuçado que os criadores  da série quiseram oferecer, mas que a julgar pelas reacções pode ter vindo tarde demais. Pela minha parte foi um esforço notado e bem-vindo.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Nem tenho a certeza que vissem os filmes um do outro



To Catch a Thief - Alfred Hitchcock


The Horse Soldiers - John Ford

terça-feira, 17 de setembro de 2013

"It's a hard world for little things" (ou "coitadinho de quem é pequenino")



Quando se usa crianças em filmes, a tentação de criar adultos em ponto pequeno, mas melhores, ganhou quase sempre. É o elogio da inocência como sinónimo de bem e até de inteligência, que atingiu o seu ponto mais baixo e perverso com a criança grande Forrest Gump. A utilidade destas personagens é normalmente a de compasso moral dos adultos com quem contracenam. Spielberg, de quem nunca se poderá dizer que não sabe recriar a infância, teve sempre como tema este confronto entre um mundo bom e um corrompido e os únicos bons adultos são os que conseguem recordar (de forma sempre incompleta, claro) o que é voltar a ser uma criança.

A infância é um tema fascinante, mas mais vasto. É incompreensão (também do mal, sim, mas não como oposto ao bem), é uma imaginação descontrolada que por vezes cria fantasias negras (tive os piores pesadelos que me lembro antes dos dez anos), e portanto, medo. É um território de medo e de medos de que nunca nos esquecemos. Hitchcock lembrava-o frequentemente e era essa a sua forma de avaliar se estava a criar bom ou mau terror. Comparava sempre com o que o assustava nas histórias que lhe contavam em criança.

Dois filmes de fácil associação - Night of the Hunter de Charles Laughton e El Espíritu de la Colmena de Victor Erice - cumprem melhor do que qualquer outro que me lembre este retrato difícil. Não só o medo, embora em parte seja esse o grande tema, mas a curiosidade, a ingenuidade (ao serviço de nada, está só lá) e, o que talvez falte em outros filmes, uma forma de pensar menos lógica, mais aleatória, do que conseguimos compreender enquanto adultos, mas nem por isso correcta. Há ainda tudo o resto como a inocência e bondade, a ligação a manos, ou a relação de confiança (e de desconfiança) com os pais. É um conjunto que raramente atingiu um carácter tão total como nestes dois filmes.

BJ

Blue Jasmine tem sido descrito como um corpo estranho na obra de Woody Allen e o providencial regresso aos bons filmes depois do habitual anúncio morte do talento do artista (que acontece, pelo menos desde Stardust Memories, é o quanto a conversa do ano passado depois do filme de Roma é original).

Independentemente da tolice do regresso, pode reconhecer-se que há alguma novidade em Blue Jasmine. Uma personagem como esta, tão "estragada" e destruída por dentro, não é muito habitual em Allen, mesmo que a neurose, a ansiedade, e a doença tenham sido sempre temas presentes. Assim de repente, lembro-me de Charlotte Rampling em Stardust Memories, embora mais usada para caracterizar a personagem de Woody Allen do que para existir enquanto tal, e de Radha Mitchell em Melinda and Melinda, filme sobre o qual nunca entenderei como lhe caiu tanta má opinião em cima. Em Blue Jasmine, tragédia e comédia estão tão sobrepostas como estavam formalmente separadas em Melinda and Melinda (exercício obviamente colado a Malle quanto mais não seja por ver Wallace Shawn a conversar numa mesa de restaurante em Nova Iorque).

É raro ainda que a personagem central seja tão preponderante, mas a isso já não é estranho que seja de Cate Blanchett de quem estamos a falar. E talvez se venha a dizer que Woddy Allen lhe deve este regresso aos bons filmes, mas é muito provável que o contrário não seja menos verdadeiro. Cate Blanchett deve provocar mais noites em branco a Meryl Streep do que Cristiano Ronaldo a Eusébio. É de certeza a melhor actriz da actualidade e pode aspirar a ser a melhor de todos os tempos, mas os últimos dez anos, desde Life Aquatic, foram no mínimo áridos. Entre muito trabalho sem absolutamente nada a apontar como nos Senhores dos Anéis e sucedâneos, Indiana Jones, Robin Hood ou naquele acidente de David Fincher, há alguns exercícios óbvios e aborrecidos como Elizabeth ou Katharine Hepburn e aquele truque de feira algo gratuito de I'm Not There de Todd Haynes.

De Cate Blanchett nunca se espera menos do que a perfeição, e é o que acontece em Blue Jasmine, mas acontece um pouco mais. Esta pode bem ser a personagem de Woody Allen mais bem escrita de sempre. Talvez soubesse que com Blanchett (ele que sempre confessa ter muito pouca paciência para o trabalho dos actores) não podia fazer menos do que isso. É um daqueles encontros que fazem engolir em seco quem já só espera o pior de Woody Allen, mas também quem alimenta embirrações completamente inexplicáveis com Cate Blanchett (ok, aqui admito que seja só eu).

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O espírito da colmeia

Quinta-feira passada, na Cinemateca, Victor Erice preparava-se para fazer a primeira de muitas apresentações dos seus filmes pela mão, talvez literalmente, da directora. Esta, antes de anunciar o realizador com justificado orgulho, informou as pessoas de uma enorme surpresa preparada para sábado. O raciocínio que reproduzo de seguida, só o contei, felizmente, a um par de pessoas, mas pareceu-me o único plausível: sendo que sábado seria apresentado em ante-estreia Like Someone in Love, o filme "japonês" de Kiarostami (estas aspas não fazem aqui falta nenhuma por muitas razões), e visto que estava informado da amizade conhecida entre este e Erice, com exposições e outras experiências partilhadas, não vi como podia a surpresa ser outra que não a presença do iraniano na festa.

Cheguei cedinho no sábado, portanto. Bem a tempo de ver a directora da Cinemateca com um, digamos, casaco de inspiração japonesa, e reflectir se, posto isto, preferia que Kiarostami estivesse ou não presente. Não estava, mas estou convencido que a minha linha de pensamento fazia muito mais sentido do que a realidade, pelos dados que me foram fornecidos.

Ainda que ninguém tenha pensado como eu, a Cinemateca estava cheia e a ignorante vox populi habitual  na linha d"uma sala que exibe sessões para três pessoas de gola alta e óculos de massa", não tardou a passar para um curioso "é uma vergonha que as bilheteiras não funcionem eficazmente". Sinceramente, preocupa-me um pouco mais a falta de eficiência com que é servida uma imperial (um euro e dez, no entanto, o que são óptimas notícias) ou com que se gere a logística dos croquetes ("temos, mas é preciso ir fritar"). Sendo no entanto gente simpática e solícita, admitimos que os nervos vêm só de uma vontade genuína em servir bem, e que a eficiência será em breve mais constante. É importante que a população refreie um pouco a eventual irritação que a dificuldade em pagar a conta a segundos do início de um filme possa provocar, até porque a culpa desta situação é mais da população do que do corpo de trabalhadores do bar.

Perto das sete, sempre com impecável sentido de tempo (bilhete comprado a tempo, imperial paga a tempo), partilhei a satisfação da multidão que se acumulava à porta das salas antes de entrar para a ante-estreia de Like Someone in Love, com a inexplicável ausência do realizador, mas apresentado pelo seu bom amigo (eu disse logo) Victor Erice, que, momentos antes de entrar tinha sido conduzido pelo braço a uma terceira pessoa com a promessa de que lhe seria apresentado um poeta.

Vitor Erice é um homem de 73 anos. Antes de continuarmos, façam por favor uma pesquisa por Victor Erice no Google Images para tentar perceber que tipo de contrapartidas se deve oferecer ao diabo para conseguir aquele nível de implantação capilar aos 73 anos. É também um homem extraordinário, humilde na apresentação da sua obra mas seguro da sua importância, directo, simples, generoso, claro em todas as abordagens do que está a explicar (está sempre a explicar alguma coisa da forma menos ofensiva possível).

Assim que se acenderam as luzes após Like Someone in Love, a unanimidade que eu decidi que iria existir em torno do filme foi logo quebrada por alguns comentários de anónimos que se cruzavam comigo, e que pareciam ora estranhamente ofensivos ("isto era para rir, certo?"), ora um alerta quanto ao meu sentido crítico quando estão envolvidas referências mais ou menos óbvias a Ozu ("fiquei um bocadinho desiludida"), ora a prova de que os memes da internet não são inventados do nada ("gosto mais dos primeiros trabalhos dele"). Talvez porque o público fosse fortemente constituído por casais de namorados, nenhum dos homens com quem me cruzei mencionou os lábios da protagonista, embora alguns olhares vazios e distantes em silêncio fossem de certa forma comprometedores. Eu próprio explicarei mais tarde porque acho que está tudo bem com estes lábios e até mesmo com o filme de Kiarostami.

Intervalo das duas sessões, ainda mais gente no hall, acumulavam-se os poetas (foi-me mesmo apontado um), nenhum tempo para uma imperial, um justificado ambiente de festa partilhado por todos os presentes em que se notava bem a satisfação revanchista dos olhares cúmplices que pareciam dizer para a massa filisteia lá fora "com que então éramos só três, hã?". Soube mais tarde, com pena, que Pedro Costa começava a apresentação de I Walked with a Zombie de Tourneur na sala ao lado com "eu queria que A Casa de Lava fosse um remake deste filme", mas não escolhi mal. As duas curtas de Erice (na verdade três: a surpresa - e boa - foi a exibição de Vidros Partidos, filme que fez para Guimarães 2012) são dois filmes reconfortantes e (sei que todos o são, mas estes de forma especial) muito pessoais, donde foram escolhidos a dedo para uma despedida.

No final da exibição, a aguardada conversa com Erice e Costa contou só com Victor Erice. Não é demasiado sublinhar a simpatia deste homem que nos fez esquecer de perguntar se Pedro Costa estaria aborrecido ou amuado, e que lhe permitiu não mandar à merda o jovem "estudante de cinema" que lhe disse estar muito apreensivo por ter de vir a fazer cinema num mundo como este, onde a poesia já morreu. É de facto azar um gajo nascer nestes tempos e não nos de Murnau, Dreyer, Bresson ou Erice, em que a poesia que abundava pelo mundo fazia praticamente todo o trabalho por eles.

Existir uma Cinemateca tão boa como a Portuguesa prova sempre ser, é um grande privilégio e que permite sábados tão extraordinários como este. Num só dia estiveram dois dos maiores realizadores vivos a apresentar filmes em salas diferentes (no início da semana esteve também Denis Côté antes dos seus) e as salas esgotaram com facilidade. É um disparate achar que é necessário discutir a utilidade da Cinemateca e ter de voltar sempre a ler todos os anos dissertações bem ou mal intencionadas sobre o Bem Público. Há discussões bem mais interessantes (e úteis), até mesmo aquelas em torno da morte da poesia.

Sete horas depois de ter chegado à Cinemateca, o destino entregou-me o equilíbrio intelectual em forma de jantar num muito competente restaurante de taxistas na Paiva Couceiro, onde nem sempre estive certo de não levar nos cornos por causa de uma discussão, na qual nunca estive envolvido, sobre a distância exacta em linha recta entre Lisboa e Madrid.