quinta-feira, 20 de junho de 2013

You, Sir, are a gentleman and a scholar

No segundo filme de Robert Bresson não é possível ainda saber que teríamos pela frente as obras-primas de Un condamné à mort s'est échappé ou Pickpocket, e era impossível adivinhar que em breve Bresson iria apenas trabalhar não-actores e não-diálogos ou que se tornaria no mais asceta dos realizadores. Les Dames du Bois de Boulogne é um melodrama com as suas extravagâncias, que começam no facto de ser um filme de Bresson, com guião de Cocteau adaptado de uma história contada em Jacques, o Fatalista de Diderot e lembra os melhores Renoir e Hawks. Só poderá sair desiludido quem se habituou mal ao que nem Bresson ainda saberia vir a ser. Estamos todos em absoluta legitimidade.

O argumento vem de uma das poucas histórias no livro de Diderot que não é contada por Jacques e, adaptados os tempos para os anos quarenta de Bresson, é bastante fiel ao original, excepto num único elemento. Tenho de contar parte da história, mas sendo um filme com quase setenta anos, a vergonha deste eventual spoiler não é menos vossa do que minha. Les Dames du Bois de Boulogne é a história de uma mulher despeitada pelo fim do amor do seu noivo que, de vingança, pretende juntá-lo a uma jovem que recebia favores de homens (ou lá como se dizia na altura). Para o fazer, retira a rapariga e a sua mãe da rua, põe em marcha um elaboradíssimo plano para lhes limpar o nome, e poder apresentá-las ao ex e deixar o amor acontecer. Apaixonado pela pureza absoluta da jovem, o homem consegue finalmente convencê-la a casar, apenas para ouvir, depois de celebrado o sacramento, que esta rapariga tem um passado conhecido em toda a cidade.

Na história contada no livro (por uma estalajadeira a Jacques e ao seu amo), a rapariga deixa-se levar sem resistência e até com entusiasmo pelo plano da mulher e da mãe, mas no filme de Bresson o seu edifício moral não a deixa alinhar nas maquinações de que se apercebe muito cedo. Resiste, revolta-se, sofre, até enfim ceder ao amor. O resto é precisamente igual. A história da estalajadeira tem esta variação, é certo, mas Diderot, ou melhor, o amo de Jacques, encosta logo à parede Bresson (ou Cocteau, não sei) com quase 200 anos de avanço e avisa-os que a personagem contada pela estalajadeira está mal feita. O parágrafo seguinte é o momento em que o amo de Jacques diz o que achou do que ouviu. Perante isto, que podia Bresson (ou Cocteau) fazer? Palmas, Denis!

 ...[N]ão fiquei de todo satisfeito com aquela jovem durante todo o decurso das manobras da dama de Pommeraye e da mãe. Nem um instante de temor, nem o mínimo sinal de incerteza, nem um remorso; vi-a prestar-se sem repugnância àquele longo horror. Tudo o que exigiram dela, nunca hesitou em fazê-lo; (...) pareceu-me tão falsa, tão desprezível, tão má como as outras duas... Senhora estalajadeira, vós contais bastante bem; mas não sois ainda profunda na arte dramática. Se queríeis que aquela jovem tivesse interesse, teríeis de lhe conferir franqueza e mostrá-la vítima inocente da mãe e de La Pommeraye, seria necessário que os tratos mais cruéis a arrastassem, apesar das suas resistências(...); era preciso preparar assim a reconciliação daquela mulher com o marido. Quando se introduz uma personagem em cena, é preciso que o seu papel seja uno; ora perguntarei à nossa encantadora estalajadeira se a jovem que conspira com duas mulheres pérfidas é a mesma mulher suplicante que vimos aos pés do marido... Pecastes contra as regras de Aristóteles, de Horácio, de Vida e do Corcunda.

2 comentários:

Menina Limão disse...

Que maravilha. :)

Rosie Posie disse...

Melhor observação do "Les Dames du Bois de Boulogne" que li até hoje.