O Luís Miguel Oliveira (cujas Aranhas ainda conseguem ter mais actividade do que este blog nos últimos seis meses), escreveu uma vez - paráfrase muito livre a partir daqui - não gostar da expressão a magia do cinema porque o que existe é muito mais carpintaria, engenharia, enfim, outro tipo de trabalho manual. Esta imagem, das filmagens de M, é a ilustração perfeita desta ideia.
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
quinta-feira, 13 de março de 2014
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
Jason
Imaginem as seguintes premissas para uma história:
- Um fulano mascara-se de lobisomem para assaltar casas à noite, na convicção de que se for apanhado em flagrante as pessoas terão medo. Uma noite é fotografado e aparece nas notícias. Os lobisomens da cidade lêem os jornais nessa noite e decidem que é necessário matar o exibicionista.
- Ernest Hemingway, James Joyce, Scott Fitzgerald e Ezra Pound são jovens desenhadores de BD que vivem em Paris nos anos 20. Encontram-se em cafés, aconselham-se com Gertrude Stein, Fitzgerald queixa-se de Zelda, Hemingway de falta de dinheiro. Decidem assaltar um banco.
- Numa pequena cidade do oeste americano um forasteiro chega na sua bicicleta, é reconhecido por todos e recebido com consternação. O xerife sabe que ele voltou para ajustar contas do passado. A namorada diz-lhe que ninguém pensará mal dele se se recusar a enfrentá-lo. O forasteiro pede um mocaccino no saloon e conta a quem quiser ouvir que nunca se esqueceu da partida de xadrez com o xerife em que este o venceu em 28 jogadas. Marcam nova partida para o dia seguinte, ao nascer do sol.
- Athos é um velho mosqueteiro do rei em Paris, na república francesa do que parecem ser os nossos dias. É um homem extremamente chato que aborrece as pessoas que lhe dão dinheiro para uma garrafa de vinho com histórias de capa e espada intermináveis. A Terra sofre um ataque de marcianos e Athos consegue viajar até Marte e, com a ajuda da princesa local e do florete (contra pistolas de laser), salvar a Terra.
- Dois corcundas, assistentes de cientistas loucos que pretendem, respectivamente, dar vida a um morto e criar uma máquina para viajar no tempo, encontram-se no intervalo de almoço num restaurante e falam sobre banalidades, futebol, mulheres, uma ou outra ambição para o futuro. Acabam de almoçar, despedem-se com um aperto de mão, voltam para o trabalho.
Se não fosse por mais nada, já valia a pena ler um livro ao acaso de Jason, um norueguês de quarenta e muitos anos. Nem sei se interessa saber que os seus personagens são sempre pintados como animais diversos (cães, corvos, gatos, coelhos), sem qualquer ambição naturalista (os bichos estão mais perto de máscaras africanas do que de animais propriamente ditos). Ou que, com um domínio notável da linguagem de cinema, mimetiza nos seus quadros mudos de Buster Keaton, westerns de John Ford, filmes noir de Fritz Lang ou diversos géneros de filmes b de terror, ficção científica, ou histórias de gangsters. Nos livros de Jason, os seus heróis da BD são óbvios: declarada e humildemente plagia Pratt, Moebius, Hergé e Bilal. Em macguffins dignos do mestre, as premissas acima são sempre pretextos para temas mais simples e antigos (amor, traição, fim da infância, gente boa, gente má, etc.). Cada página tem sempre seis quadros, do mesmo tamanho.
Ainda assim posso garantir que quem ler pela primeira vez qualquer Jason vai dizer aos amigos que nunca viu nada semelhante e não é porque haja bebés comidos por zombies, adultos que se deslocam em andas em vez de carros, escolas de carrascos (com aulas de teoria sobre corte com machado vs corte com guilhotina e aulas práticas de tortura e confissão) ou porque um coelho diz a um cão que se tivesse o poder de matar impunemente qualquer pessoa no mundo começava pelos Radiohead.
É só porque nunca houve nada parecido com Jason na BD ou noutro sítio qualquer.
Jason, The Left Bank Gang, 2006 |
sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
As ancas do Tom Hiddleston
Há um novo e bem-vindo blog indie (como se confirma pelo alojamento wordpress) nas ruas, escrito por aquela que é a pessoa mais bem informada do país sobre os assuntos em qualquer momento. Eu próprio, que já praticamente cheguei ao fim da internet, tenho dificuldades em manter este nível de actualidade (sabia da Karen O, não sabia dos Arcade Fire). Assim a Rita vá postando, e vocês vão lá passando, o bom gosto deixa de ter desculpa para nos passar ao lado.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2014
Reboot
A minha relação com Elvis Costello esquematiza-se assim:
Momento 1 - Pessoas bem formadas dizem-me que o Elvis Costello é uma pessoa muito importante nisto da música. Em paralelo, listas diversas e diversas histórias da música popular dizem-me que alguns discos do Elvis Costello são muito importantes.
Momento 2 - Ouço uns quantos álbuns, com esforço; à terceira ou quarta música concluo que não percebo nada disto. Para além de me aborrecer muito, não consigo entender o que há ali de assinalável.
Momento 3 - Uma rádio passa uma canção bem esgalhada que mistura um rock lo-fi de bom gosto com um sentido de soul raro, paro o que estou a fazer, ouço até ao fim e concentro-me para ouvir com atenção o que diz o radialista no final. O radialista diz "estivemos com Elvis Costello, etc. etc.".
Momento 4 - ah...
Momento 5 - regresso ao Momento 2 e assim por diante.
Este fim-de-semana deu-se um destes Momento 3 e ouvi o I Want You (segundo me contou o agregado familiar, posso ser a única pessoa viva que nunca a ouviu e parece que há uma famosa versão cantada pela Fiona Apple). Uma interpretação tão teatralmente sofrida raramente faz alguma coisa por mim, mas aqui está tudo bem com isso. Há ainda um conjunto de pormenores importante: julgo que não sou só eu que pensa imediatamente no I Want You (she's so heavy) de Beatles.
Se repararem bem, as duas têm o título I Want You e foi este pormenor praticamente indetectável que me alertou para o restante. Há também em ambas o tema comum, a interpretação quase demasiado pessoal, repetição hipnótica (quer de palavras, quer do riff e ritmo), uma duração muito mais longa do que o habitual (pelo menos no habitual dos Beatles).
Mas uma não é uma versão da outra e estamos longe de plágio ou sugestão mesmo que a um nível muito tangencial. Se calhar sou obrigado a concluir que, intencional ou não, estou pela primeira vez perante um remake de uma canção.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2014
Boletim estatístico de 2013
Nada tenho contra listas do ano, é a falta de memória e de organização que não me deixam fazê-las. Em alguns casos também, provavelmente, a vergonha na cara. Ainda assim, um destes dias decidi ir ao meu last.fm ver que canções ouvi mais em 2013 e tive algumas surpresas. Umas dizem bem de mim, outras não, mas decidi começar o ano sob a égide da franqueza. Ouvi muitas coisas de 2013 de que gostei muito e talvez até conseguisse fazer a lista do ano pela primeira vez, onde estariam com certeza Arcade Fire, FIDLAR, Palma Violets, Salvia Plath, Bass Drum of Death, Foxygen (que só me prestei a ouvir em 2013) e até o disco de Devendra Banhart que aparece como desilusão do ano para montes de gente. Mas vamos antes ver que aberrações estatísticas saltam de uma lista honesta (a mais surpreendente é não haver nenhuma canção de Beatles no top 10, provavelmente a primeira vez que acontece nos últimos 15 anos). E há coisas ainda mais esquisitas. Eis as dez canções que ouvi mais vezes em 2013:
1
Dave Brubeck – Unsquare Dance
Dia 8 de Maio o Google Doodle comemorava o nascimento de Saul Bass com uma animação ainda melhor por ter sido ilustrada com o Unsquare Dance de Dave Brubeck. Nos três dias seguintes ouvi o tema 263 vezes, é assim que funciona a minha simples cabeça. Brubeck é, a par com Shane Carruth, a pessoa que mais se divertiu com o tempo. Sendo talvez a expressão musical mais criativa de sempre, o jazz pouco arriscou para lá do compasso quaternário (ainda que muito o tenha subvertido), mas Dave Brubeck fê-lo sempre desde que editou Time Out e notavelmente sem tornar as músicas em experiências de laboratório, muito pelo contrário. A prová-lo está Time Out ser, com Kind of Blue de Miles Davis, o disco de jazz que mais vezes se encontra em estantes de pessoas que não ouvem jazz. Unsquare Dance, que não está neste álbum, é, parafraseando Brubeck, um desafio a quem gosta de bater o pé (é mesmo difícil: "deceitfully simple, it refuses to be squared"). No final consegue ouvir-se o baterista Joe Morello a rir de alívio por ter conseguido chegar ao fim.
2
Waxahatchee – Blue Pt. II
Em doze meses esta rapariga lançou uns três álbuns, todos eles com uma mão cheia de canções eficazes. Esta, toda herança dos anos 80 de Kim Deal, foi a que ouvi mais mas podia ter sido outra. Há mais cinco ou seis cuja estatística deve andar muito perto. Todas as canções parecem ter a fórmula de uma melodia fofinha sobre uma linha de baixo dura e letras com métricas empenhadas em não deixar nenhuma nota por cantar.
3
Mina – Fa' Qualcosa
Em Agosto de 2012 estive num café em Paris chamado Au Limonaire (no relation, apesar da piada; um limonaire é uma espécie de orgão) no qual todas as noites, a seguir ao jantar, se fechavam as portas (ninguém entra, ninguém sai) e alguns dos clientes mais habituais subiam a um pequeno palco onde já estavam um piano, umas guitarras, contrabaixo, acordeão e saxofone, correndo, através de Montand, Brel, Piaf, Aznavour ou Adamo, o repertório da chanson française de uma ponta à outra. Este sítio estava tão perto de ser um café de um filme da Nouvelle Vague (só faltava uma máquina de flippers) que se teme logo não passar de armadilha para turistas. Mas não é. Numa dessas noites, uma das empregadas de mesa subiu ainda de avental ao estrado onde estava a banda e destacou um ou dois versos do que iria cantar a seguir. Explicou que gostava muito do crescendo da frase "Parla, Fa' Qualcosa", e de uma outra, que talvez lhe parecesse mais gráfica do que a frase merecia, mas era evidente que lhe era especial: "mandami dei fiori anche se non sono morta". O original não é tão bom como o que ela cantou, mas foi sendo o suficiente. You have to see past the kitsch, como se diz no Greenberg de Noah Baumbach.
4
Fred Buscaglione – Guarda che luna
Esta é consequência da anterior; uma lembrou-me a outra, só por serem ambas em italiano. Fred Buscaglione era um cantor/actor que vestia sempre a personagem de um gangster cretino, donde a minha simpatia. O sofrimento desproporcionado e canastrão desta canção é irresistível ao ponto de me sensibilizar sem ponta de ironia. Talvez o século XX não seja o melhor cartão de visita da canção italiana, e tanto esta como a música anterior da Mina estão mais perto do telefone branco do que do grande cinema daquela terra, mas nem só de tarantellas e do Bella Ciao vive uma noite de copos. Com vídeo percebe-se melhor.
5
Charlie Haden – Spiritual
O álbum Steal Away, onde está este Spiritual, pareceu-me estranho por duas razões. Charlie Haden tem mais do que simpatia pelo Partido Comunista (as gravações com Carlos Paredes não foram só um acaso). Chegou a ser preso pela PIDE quando decidiu dedicar a sua Song for Che aos revolucionários das colónias num concerto do Festival de Jazz de Cascais. É alguém que devem ter presente quando se lembrarem de fazer piadinhas com baixistas, portanto. Ter escolhido fazer um álbum com raízes tão fortes de gospel e música espiritual foi uma surpresa para mim. Por outro lado, as melodias e lirismo das linhas de baixo não pareciam a escolha mais óbvia de um contrabaixista que fez nascer o free jazz com Ornette Coleman. Quando penso em contrabaixos, terei sempre Ray Brown num primeiro lugar muito acima de qualquer outro, mas é provável que seja Charlie Haden a ocupar o segundo.
6
Lady Lamb the Beekeeper – You Are the Apple
A única razão para esta pessoa não estar mais bem colocada é que ouvi o álbum em repetição durante muito tempo e nenhuma música ganhou às outras. É mais uma miúda de 21 anos ou coisa que o valha que só pode ser comparada com Waxahatchee pela facilidade com que faz canções, mas as desta são temas que terão sete minutos se assim for preciso, sem medo de colagens ou momentos de anti-clímax. É verdade que é em Taxidermist Taxidermist que está o génio do álbum, mas foi por todas as restantes serem tão boas como You Are the Apple, que o ouvi tantas vezes. Estava convencido que ia aparecer para aí em listas de álbuns do ano, pelo que um de nós (eu ou o conjunto universal de publicações de música) não percebe nada disto.
7
Billie Holiday – The Man I Love
Nisto das vozes que cantam standards, já tenho a vida resolvida há muitos anos: Billie Holiday e Ella Fitzgerald cumprem em todas as situações possíveis. A introdução desta versão de The Man I Love aponta quase sem margem para dúvidas para um qualquer Woody Allen, mas é mais provável que me tenha posto a ouvi-la depois de ter visto em casa os Fabulosos Irmãos Baker (posso estar enganado, mas acho que é este tema que a personagem de Michelle Pfeiffer canta quando aparece pela primeira vez no filme).
8
Everything Everything – Cough Cough
A primeira canção que ouvi em 2013. Fiquei muito satisfeito por achar que tinha descoberto uns novos Battles, Animal Colective ou por aí. Afinal não, o resto do álbum é uma merda, mas também há mérito nisto de se fazer uma canção assim. Grande bombo, harmonizações vocais com tosses e uma pianada a lembrar os melhores tempos de Prince. Foi uma óptima forma de começar o ano.
9
Jackson Scott – That Awful Sound
Nada de especial aqui, mas eu fico satisfeito com uma música em que tudo é tão certinho. Esta canção é, do começo ao fim, uma canção de Pixies com Daniel Ash dos Love and Rockets a vocalista. Quando ouço o solo de guitarra, tenho dificuldades em jurar, mesmo que tivesse a vida em jogo, que não é o Joey Santiago que ali está. Também é de 2013, e nem me lembro se ouvi o resto do álbum.
10
Pixies – Vamos
Não vou agora pôr-me aqui a falar dos Pixies.